O Cavalheiro de Paris em Havana

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Em 2008, estive em Havana com a minha doce companheira Carmola. Flanando pela cidade, percebemos uma tradição cubana: adolescentes comemorando os 15 anos vestidas de gala, sendo fotografadas em praças, ruas e ao lado de monumentos. Nisso, vimos uma estátua rara em se tratando de Cuba, uma estátua no chão, sem pedestal.  O monumento era de um senhor de cabelos longos, barba pontiaguda,  com uma capa às costas, carregando um jornal debaixo do braço.

Perguntamos a uma guarda na esquina sobre quem era a tal figura e, como na Ilha ninguém fica sem resposta a um questionamento,  o segurança relatou que aquele era o famoso Cavalheiro de Paris, um mendigo “adotado” pela Revolução, que todos admiravam, e que estava enterrado ali na igreja de frente à estátua, no mesmo chão onde estão enterrados nobres espanhóis. Depois do relato, orgulhoso, o guarda questionou: “Que país enterra seu mendigo ao lado de nobres? Somente Cuba”.




Depois de  lembrar sobre o Cavalheiro de Paris a uma amiga, a cineasta Beth Formagini, que está indo para Havana, cheguei em casa e fui no Google, onde descobri este belo texto sobre a grande figura (Washington Luiz Araújo).

Leiam:

Por Luiz Bernardo Pericás, em Blog do Boitempo – 

Sentiu o bafejo úmido e salgado do mar penetrando em suas narinas dilatadas. Ao caminhar, sonolento, pelo calçadão do Leme, Gonzalo se recordava dos tempos em que estivera em Havana, muitos anos antes: o centro antigo, o Vedado, as enormes ondas atingindo as muretas do Malecón e molhando os casais de namorados desavisados… E se lembrava também do Caballero de París, um dos homens mais decentes e elegantes que já conhecera.

Por vários anos, muita gente achou que o humilde maltrapilho espanhol fosse apenas mais um mendigo sujo que caminhava sem destino pelas ruas da capital. Com o tempo, contudo, todos foram percebendo que ali estava um fidalgo moderno, um verdadeiro “aristocrata” das praças e calçadas da grande metrópole caribenha…

José María López Lledín nasceu em 30 de dezembro de 1899, na aldeia de Vilaseca, distrito de Fonsagrada, Galícia, perto da fronteira da Astúria e próxima ao rio Eo, na época um povoado com pouco mais de duas centenas de casas. Foi batizado em seguida pelo pároco de Salvador de Negueira.

Há ainda muito mistério sobre a juventude de José. Há quem diga que ele era o quarto de oito filhos. Outros, que eram onze irmãos. De qualquer forma, ele teria sido o único que aprendeu a ler e escrever: adorava as boas leituras, a música e o conforto. Chegou até mesmo a terminar o curso secundário. “Desde garoto tinha jeito de nobre”, comentavam em seu vilarejo. Alguns dizem que sete de seus hermanos imigraram para os Estados Unidos e quatro, José incluído, foram para Cuba. Uma versão distinta aponta que todos os “oito” teriam se mudado para o Caribe. De qualquer forma, depois de embarcar no vapor alemão Chemnitz, chegou à ilha poucos dias antes de completar quatorze anos de idade. Viveu com um tio e com a irmã Inocencia (que chegara lá três anos antes) durante algum tempo, para depois largar a tutela familiar e procurar seguir seu caminho por conta própria. Trabalhou numa loja de flores, numa livraria, num escritório de advocacia, em cassinos, restaurantes e vários hotéis, como o Inglaterra, o Telegrafo, o Sevilla, o Manhattan, o Royal Palm, o Salon A e o Saratoga. Ao mesmo tempo, estudava inglês e refinava seus modos no trato com os clientes. Parte do dinheiro que ganhava, enviava aos seus pais, que continuavam cuidando do pequeno vinhedo que possuíam no Velho Continente.

Até 1920, tudo parecia ir bem para aquele que mais tarde seria conhecido como “El Caballero de París”. Era apenas mais um jovem imigrante e trabalhador esforçado, tentando, como podia, ganhar a vida honestamente. Até ser preso no Castillo del Príncipe e tudo mudar.

Ainda hoje há controvérsias sobre os motivos para sua prisão. Alguns dizem que foi por causa da venda de bilhetes de loteria falsos; outros, que foi acusado injustamente por um assassinato que não cometeu. Não se sabe, inclusive, por quanto tempo ficou atrás das grades. Certos pesquisadores afirmam que seria em torno de dois ou três anos. Há quem insista, entretanto, que sua sentença original teria sido de dez anos, mas que ele teria cumprido apenas seis e depois, libertado. O fato é que na cadeia começou a perder a noção da realidade. Pronunciava discursos exaltados para os outros detentos, apresentando-se a todos como o Papa, um Rei ou um Cavaleiro. O que se pode afirmar é que o período que permaneceu aprisionado foi o suficiente para acabar com sua sanidade.

Quando foi libertado, magro e andrajoso, começou a caminhar pelas ruas da capital, acreditando piamente em seu novo personagem. Vivia delírios de grandeza: era o comandante de gigantescos exércitos, senhor de castelos medievais, um homem de muito poder.

Nunca mais trabalhou para ninguém. Nem voltou a morar com sua família. Aquele indivíduo de estatura média, nariz aquilino, barba e bigode castanhos e pontiagudos (que ao longo dos anos se tornaram completamente grisalhos), sempre com roupas negras, uma longa capa e camisa branca, os cabelos desgrenhados que chegavam até o cóccix e as unhas compridas, tornou-se um dos personagens mais emblemáticos da paisagem habanera.

Sempre que o saudavam na rua, respeitosamente o chamavam de “caballero”, talvez por causa de seus trajes, quiçá por suas maneiras educadas com os transeuntes ou por sua figura de cavaleiro andante. Muitas são as versões sobre seu apelido. Como o povo local achava que se parecia a um mosqueteiro, e como ninguém mais sabia de onde vinha, começaram a chamá-lo de Caballero de París. Por outro lado, o próprio José gostava de dizer a todos que Havana era muito parisiense. E falava para as pessoas que era um corsário ou um cavaleiro de Lagardiere. Moradores mais antigos da capital, por sua vez, costumavam insistir que ele havia trabalhado no restaurante Paris, e que seus patrões é que teriam lhe dado aquela alcunha. Houve também quem comentasse que ele recebera aquele “título” da revista humorística Zig Zag. Finalmente, sua irmã garantia que José começara a usar o apelido depois que uma suposta namorada francesa, moradora da Cidade Luz, havia perdido a vida num terrível naufrágio. O rapaz teria ficado tão traumatizado com aquilo que, em homenagem à amada, decidira utilizar aquele nome.

O fato é que, a partir principalmente dos anos cinquenta, o burpilheiro galego se tornou uma figura famosa em Cuba. Foi internado brevemente no Hospital Psiquiátrico em Mazorra, em 1941, para ser liberado pouco depois, por ordens presidenciais.

Ainda que tivesse um ar altivo e orgulhoso, José, ao abordar os pedestres, era o mais educado e respeitoso dos cidadãos. Carregava constantemente um portfólio de papéis e uma sacola, de onde tirava postais coloridos por ele mesmo. Nunca pedia dinheiro a ninguém; tampouco usava linguagem vulgar. Cumprimentava o indivíduo, entabulava alguma conversa sobre filosofia, religião ou política, e depois o presenteava com um cartão, com canetas decoradas com plumas de várias cores ou com qualquer outro objeto que tivesse à sua disposição no momento. Se alguém lhe oferecesse dinheiro ou quisesse pagar pelos “presentes”, ele fazia questão de devolver o troco. De vez em quando, donos de bodegas ou de pizzarias lhe davam algo para comer, sem nada cobrar.

Podia ser visto por vários bairros da cidade: andava pelo Paseo del Prado, pela Avenida del Puertoou próximo da Plaza de Armas; por vezes ia para a Iglesia de Paula e para o Parque Central; também gostava de caminhar pela rua Muralla, perto de Infanta e San Lázaro, pelo bairro do Vedado ou pela Quinta Avenida em Miramar. Nunca viajou para fora da capital. Mesmo com um aspecto exótico e rompegalas, era visto como uma celebridade local.

Depois da revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara, seus irmãos e irmãs saíram de Cuba, mas ele decidiu ficar. Até que em 7 de dezembro de 1977, por motivos humanitários, foi internado no mesmo sanatório onde havia ficado por um breve período, décadas antes. Aí lhe deram banho, novas roupas, lavaram seus cabelos (nos quais fizeram uma longa trança) e lhe forneceram boa alimentação. Todos os exames físicos, laboratoriais e psicológicos foram realizados nele. Ah, o bom e velho “Caballero de París”, esse adorável parafrênico! Apesar de tudo, seus anos restantes foram tranquilos, ainda que, certa vez, quebrasse a bacia, por causa de um escorregão. Enquanto esteve internado, nunca teve alucinações. É mais do que se pode dizer de tanta gente que se conhece por aí. Terminou seus dias em 11 de julho de 1985, aos 86 anos de idade. Foi enterrado no cemitério de Santiago de Las Vegas, mas algum tempo depois, seus restos foram transferidos para o Convento de São Francisco de Assis, no centro de Havana. Em frente ao local, colocaram uma estátua de bronze sua, em tamanho natural, feita pelo escultor José Villa Soberón. Lá está, até hoje, a imagem em metal, bastante fidedigna, daquele homem, caminhando na calçada, no meio da multidão. Aquela não é uma estátua de um rei, de um general ou de um presidente. Não é a estátua de um cidadão repleto de títulos, de dinheiro ou de poder. É a imagem de um homem puro de alma, simples, singelo e sincero. De um louco mais são do que a maioria das pessoas que conhecemos. Só mesmo um grande povo é capaz de admirar seus vagabundos e poetas…

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato SabidoLivraria Cultura e diversas outras lojascustando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas(Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train(Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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