Com suspensão de pacotes, clientes ficaram na mão e 123 Milhas entrou na mira do governo, do Procon e até da CPI das Pirâmides Financeiras
Por Fábio Matos, compartilhado de Metrópoles
A decisão da agência on-line de viagens 123 Milhas de suspender a emissão de passagens e a venda de pacotes promocionais com embarques previstos para o período entre setembro e dezembro deste ano deixou clientes à deriva e mergulhou a empresa em uma grave crise, que pode terminar em severas sanções e até mesmo na paralisação temporária de suas atividades.
A medida afetou viagens vinculadas à linha Promo, que corresponde a 7% dos embarques da companhia em 2023. Segundo a 123 Milhas, a suspensão “deve-se à persistência de fatores econômicos e de mercado adversos”, entre os quais “a alta pressão da demanda por voos, que mantém elevadas as tarifas mesmo em baixa temporada, e a taxa de juros elevada”.
“Os valores pagos pelos clientes que adquiriram produtos da linha Promo com embarque previsto para setembro, outubro, novembro e dezembro de 2023 serão integralmente devolvidos em vouchers, com correção monetária de 150% do CDI – acima da inflação e dos juros de mercado. Os vouchers podem ser usados por qualquer pessoa para compra de outros produtos da 123 Milhas”, informou a empresa, em nota.
Como funciona o negócio da 123 Milhas
Fundada em 2017, em Belo Horizonte, a 123 Milhas faz a intermediação de compra e venda de milhas aéreas para os clientes. A empresa compra milhas acumuladas que não são usadas pelos clientes dos programas de milhagem das companhias aéreas e as utilizam para emitir passagens, vendendo pacotes ao consumidor final a preços competitivos.
Pelo site da companhia, é possível adquirir passagens de avião e ônibus, pacotes de viagens, diárias em hotéis e aluguel de carros. Em seu e-commerce, a 123 Milhas vende trechos de passagens aéreas que podem ser até 50% mais baratas do que os valores de tabela das companhias.
Em pouco tempo, a 123 Milhas se tornou a maior agência on-line de venda de passagens no Brasil. Ela é considerada uma “copycat” – empresa que “clona” o modelo de negócio e as funcionalidades de outras companhias. Desde sua fundação, a agência já realizou o embarque de cerca de 15 milhões de clientes para destinos nacionais e internacionais. No início do ano, a 123 Milhas anunciou uma fusão com a concorrente Max Milhas, união que somava R$ 6 bilhões em vendas.
De acordo com dados do Relatório Setores do E-Commerce, da Conversion, divulgado em abril do ano passado, a 123 Milhas era a plataforma de comércio eletrônico de turismo mais acessada do Brasil e estava no top 10 do ranking de sites brasileiros de e-commerce. Em 2022, a agência respondeu por quase 25% de todas as buscas na internet relacionadas à palavra “turismo”.
A empresa tem como sócios Ramiro Julio Soares Madureira, Augusto Julio Soares Madureira (administradores) e Cristiane Soares Madureira do Nascimento (que consta como sócia pela empresa Novum Investimentos Participações).
Justiça é caminho mais eficaz, dizem especialistas
Além de revoltar os clientes, que inundaram as redes sociais de críticas e acusações contra a empresa, a decisão da 123 Milhas de suspender os pacotes promocionais de viagens gerou uma dura reação de órgãos de fiscalização, do governo federal e até mesmo do Congresso Nacional.
A primeira manifestação foi do Ministério do Turismo, que acionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública para que fosse aberto um procedimento investigativo. Foi o que fez, na segunda-feira (20/8), a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que também notificou a 123 Milhas. O caso é semelhante à crise do Hurb (antigo Hotel Urbano), que teve a venda de parte dos pacotes suspensa pela Senacon, por “irregularidades encontradas nas práticas comerciais da companhia” (relembre aqui).
“Essa notificação é uma averiguação preliminar, com base no noticiário da imprensa, que dá conta de que a empresa suspendeu as promoções já comercializadas. Ou seja, as pessoas pagaram e não terão seus pacotes à disposição. Nós queremos explicações. Queremos saber da empresa se é isso mesmo e quais as causas para que isso tenha acontecido”, disse ao Metrópoles o secretário nacional do consumidor, Wadih Damous.
“Se a resposta da empresa for insatisfatória e ficar configurado que os consumidores terão prejuízo, a empresa será sancionada”, explicou Damous. “A forma de sanção é multa e até mesmo, se for o caso, a proibição da comercialização de novos pacotes enquanto ela não demonstrar que tem viabilidade financeira para cumprir com seus contratos.”
Além da ofensiva do governo, a 123 Milhas foi notificada pelo Procon-SP. O órgão exige que a empresa detalhe quais seriam os fatores “adversos” que teriam levado à suspensão da venda dos pacotes e o que foi feito para atender os consumidores prejudicados. O Procon pede, ainda, que a 123 Milhas informe o número exato de clientes afetados e quais opções – além dos vouchers – foram oferecidas pela companhia para o ressarcimento. No fim de semana, o Procon-RJ já havia feito a mesma notificação.
“Essa forma que eles encontraram de suspender os pacotes está totalmente em desacordo com os princípios básicos da relação de consumo. Simplesmente dizer que vai dar vouchers aos clientes não é a atitude correta. Deveriam dar várias opções de reembolso ao consumidor, entre as quais a devolução integral dos valores”, afirma Fernanda Zucare, especialista em Direito do Consumidor e fundadora do Zucare Advogados.
“O voucher não supre o prejuízo. E também gera uma insegurança muito grande no consumidor. Quem garante que a empresa ainda estará em funcionamento daqui a alguns meses? O cliente pode estar trocando o que ele comprou por algo que talvez nem receba”, alerta a advogada.
De acordo com Zucare, caso o cliente não concorde em receber o voucher, o melhor caminho é “entrar com uma ação judicial requerendo a emissão imediata das passagens ou a restituição imediata da quantia paga em dinheiro, acrescida de juros e correção monetária”. “Também pode incluir nesse pedido indenização por danos morais e materiais”, diz.
“O Ministério da Justiça e o Procon têm o condão de obrigar a empresa a andar na linha. Mas, na maioria dos casos, só vai realmente resolver se o consumidor entrar com uma ação judicial. Precisa de um juiz decidindo pela devolução da quantia integral ou a emissão das passagens. Isso dificilmente será obtido apenas na esfera do Procon”, completa Zucare.
Wadih Damous, da Senacon, também entende que os clientes que se julgarem lesados devem acionar a empresa. “Todos os caminhos legais que os consumidores possam percorrer para fazer valer os seus direitos podem e devem ser trilhados. É possível reclamar por meio da nossa plataforma ou diretamente com os Procons e, inclusive, junto à própria empresa, o que eu recomendo”, afirma.
Segundo Larissa Jubé, advogada especializada em Direito do Consumidor do Daniel Gerber Advogados, a 123 Milhas pode, eventualmente, até ter o seu registro cancelado caso fique provado que não agiu corretamente com os clientes. “A legislação prevê que, se a empresa não seguir as determinações, fica sujeita a algumas penalidades, como aplicação de multas, interdição do estabelecimento, a suspensão das atividades e até mesmo o cancelamento do registro da empresa”, afirma.
CPI das Pirâmides Financeiras votará quebra de sigilo
O presidente da CPI das Pirâmides Financeiras, deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), usou as redes sociais para anunciar que a comissão parlamentar investigará o caso 123 Milhas. Chama-se de pirâmide financeira um esquema irregular e insustentável que gera dinheiro por meio da adesão desenfreada de novos participantes – pode haver ou não a venda de produtos ou serviços.
No caso da 123 Milhas, estima-se que as vendas dos pacotes ganhavam impulso à medida que os consumidores compravam as viagens e recomendavam a empresa para familiares e amigos. Até o momento, não há nenhum indício de que a agência coagia clientes a recrutar outros para comprar os pacotes. O relator da CPI, deputado Ricardo Silva (PSD-SP), protocolou um requerimento para a quebra dos sigilos bancário e fiscal da empresa e de seus sócios e administradores. O pedido deve ser votado nesta terça-feira (22/8).
Procurada pelo Metrópoles, a 123 Milhas não comentou a intenção da CPI de investigar a empresa. Sobre a manifestação do Procon-SP, a agência confirmou que foi notificada e disse que “irá responder às dúvidas do órgão no prazo determinado”.