Por Conceição Lemes, para Viomundo –
Pois, com base nos meus 34 anos de repórter da área de saúde, eu ouso dizer que, na semana passada, o Conselho Federal de Medicina (CFM) foi reprovado numa questão crucial para a maioria da população brasileira: o racismo no SUS.
Explico. Na última terça-feira, 25 de novembro, o Ministério da Saúde e a Secretaria de Direitos Humanos lançaram uma campanha de conscientização para enfrentar a discriminação racial no Sistema Único de Saúde (SUS). Iniciativa oportuna, digna de aplausos.
Com o slogan Racismo faz mal à saúde. Denuncie, ligue 136!, a campanha é um alerta à sociedade em geral. Ela busca envolver usuários e profissionais de saúde – leia-se médicos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas – na luta contra o racismo. Além disso, estimula as pessoas a não se calarem diante de atos de discriminação racial.
“Não podemos tolerar nenhuma forma de racismo”, enfatizou Arthur Chioro, ministro da Saúde, no lançamento. “A desigualdade e o preconceito produzem mais doença, mais morte e mais sofrimento.”
Dois dias depois, na quinta-feira 27, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou Nota à Sociedade, na qual repudia a campanha.
Nela (na íntegra, ao final), o CFM acusa a campanha de ter tom racista, rejeita que o racismo é uma das causas de má assistência no SUS e acha que o Código de Ética Médica basta para prevenir a discriminação racial:
O Conselho Federal de Medicina (CFM) – em nome dos 400 mil médicos brasileiros – repudia o tom racista de campanha lançada pelo Ministério da Saúde, que desconsidera os problemas estruturais de atendimento que afetam toda a população.
Os médicos são contra qualquer tipo de preconceito na assistência a pacientes nas redes pública e privada. O Código de Ética Médica em vigor já estabelece que os médicos devem zelar para que “as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada à herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade”.
…financiamento limitado, fechamento de leitos, falta de insumos e medicamentos e ausência de uma política de recursos humanos. Na verdade, são essas as causas do mau atendimento para a população no SUS, não importando questões de gênero, classe social ou etnia.
CFM EQUIVOCOU-SE TANTO NO “DIAGNÓSTICO” QUANTO NO “TRATAMENTO”
A partir da Nota à Sociedade, do CFM, eu me pergunto:
Seria ignorância da instituição, como observa a médica Fátima Oliveira na entrevista mais adiante?
Viveria a sua diretoria numa redoma de vidro que a impediria de enxergar a realidade brasileira?
Seria uma tentativa de esconder o racismo debaixo do tapete?
Ao acusar a campanha de racista, o CFM não estaria escamoteando o seu próprio racismo?
Ou seria o CFM adepto da teoria Não somos racistas, do jornalista Ali Kamel, apesar de as pesquisas no Brasil demonstrarem o contrário?
Não dá para saber. O fato é que:
1. Ainda existe discriminação racial na rede pública de saúde, afetando o cotidiano da saúde da população negra.
2. O CFM passou nacionalmente atestado de inépcia. Equivocou-se tanto “diagnóstico” quanto no “tratamento”, que foi a sua Nota à Sociedade.
“A relação desigual no acolhimento e tratamento, os índices de mortalidade mais elevados e o estresse psicossocial gerado pelo preconceito continuam reduzindo o potencial e a qualidade de vida desta parcela de indivíduos”, alerta a Radis, revista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “Apesar de representar a maioria da população brasileira – 54% que se declaram pretos e pardos – a saúde da população negra permanece muito prejudicada pelo racismo, especialmente aquele oriundo das instituições.”
São 109,8 milhões de brasileiros e brasileiras, dos quais 70% são usuários do SUS, segundo cálculos da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir). O pesquisador Marcelo Paixão diz que são 80%. De qualquer forma, a população total do País é estimada em 203,4 milhões.
O RACISMO REFLETE NA MORTALIDADE MATERNA E INFANTIL E NA ASSISTÊNCIA À SAÚDE
Alguns dados do Ministério da Saúde falam por si só:
* Homens e mulheres negros são atendidos em consultas médicas com menos tempo que os homens e mulheres brancos.
* 46,2% das mulheres brancas tiveram acompanhantes no parto, enquanto apenas 27% das negras utilizaram esse direito.
* Às vezes o uso de anestesia é menor nos partos de mulheres negras.
* 77,7% das mulheres brancas foram orientadas para a importância do aleitamento materno; já apenas 62,5% das mulheres negras receberam essa informação.
* As taxas de mortalidade neonatal e infantil (até os 5 anos) entre os filhos de mães negras são mais altas e apresentaram redução menor nos últimos anos. Segundo a Radis, estudo feito por pesquisadores de Pelotas, Rio Grande do Sul, mostrou que, de 1982 a 2004, as mortes de recém-nascidos caíram 47% entre filhos de mães brancas e 11% entre os nascidos de mães negras.
*As taxas de mortalidade materna na população negra são bem maiores: 60% contra 34% nas mulheres brancas.
Detalhe: já nos anos 1970 o movimento negro alertava sobre fortes indícios de que a mortalidade materna das negras no Brasil era, expressivamente, maior que do que a das brancas. O setor saúde e os governos nunca deram crédito à hipótese. Até que a enfermeira obstétrica negra e pesquisadora Alaerte Leandro Martins resolveu estudar o assunto. Alaerte integra a Comissão de Prevenção da Morte Materna do Ministério da Saúde.
“Devido à condição genética, a mortalidade materna é realmente maior entre as mulheres negras”, adverte Alaerte. “Mas o racismo também pesa.”
Hipertensão arterial, diabetes, anemia falciforme (ou doença falciforme) e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (anemia mais rara e mais fácil de tratar) são doenças mais comuns na população afro-brasileira e causas indiretas de óbito materno.
Mas não são as únicas. Pesquisa sobre morte materna no Brasil feita por Alaerte Martins revela que, no Paraná, a gestante negra tem 7,3 vezes mais risco de ir a óbito; em Salvador, 3,7.
Ela mesma explica por quê. No Paraná, a população negra é só 24%. Você chega num hospital, numa escola, a maioria das pessoas é branca. A nossa mente é seletiva. Vai atender o pacote, que é a maioria. E vai deixar para depois a minoria. Em Salvador, onde a maioria é negra, acontece o contrário. Primeiro, é atendida a maioria que é negra. Isso não significa que o risco para as brancas seja maior em Salvador. O risco para as negras é que é menor.
“O racismo e o preconceito estão tão incrustados que as pessoas aprenderam a tratar as outras no pacote. E isso se reflete na mortalidade materna, na assistência à saúde, enfim”, observa Alaerte. “Primeiro, são atendidos os iguais, depois os diferentes.”
“Imagine em casos de abortamento. As mulheres negras são mais discriminadas do que as brancas”, atenta Alaerte Martins. “Serão as últimas das últimas a serem atendidas, correndo maior risco de morte.”
Não é à toa que entidades do movimento negro saíram em defesa da campanha do Ministério da Saúde e contra a posição do CFM. Entre elas, a União de Negros pela Igualdade – Unegro.
Em Nota ao povo brasileiro (na íntegra, ao final desta reportagem), a Unegro afirma:
…apoiamos a iniciativa do Ministério da Saúde ao lançar campanha específica para combater o racismo nas esferas da saúde pública. Setor que ainda hoje a população negra vivencia um drama quase invisível para quem não é a vítima dessa logística ruim.
Ainda temos muitas pessoas morrendo de agravos sem diagnóstico, pois a ausência de um acolhimento humanizado ainda exclui muitas pacientes dos serviços públicos de saúde. Alguns profissionais da área dedicam menos tempo para um(a) negro(a) na hora da consulta médica e dos exames
…Convocamos a adesão a essa campanha aqueles que só têm o serviço público de saúde como única alternativa nas horas mais difíceis da vida, que é a hora da doença. Racismo faz mal à saúde. Denuncie!
“NEGAR A PRESENÇA DO RACISMO NA ASSISTÊNCIA À SAÚDE É UMA FALÁCIA”
A primeira reação da médica, negra e feminista Fátima Oliveira foi de indignação.
“A rigor, possessa!”, frisa a médica. “Essa nota é um absurdo sem pé e sem cabeça.”
“O CFM preferiu o caminho da negação do óbvio. Negar a presença do racismo no cotidiano da atenção à saúde no Brasil é uma falácia, já desmascarada por várias pesquisas, que o CFM tem a obrigação ética e política de conhecer”, avalia Fátima, que já foi vítima de racismo.
“O CFM não tem a menor noção do que é Saúde da População Negra e nem da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra”, vai mais fundo Fátima. “Deu atestado de ignorância em sua Nota à Sociedade.”
“Eu só não entendo a finalidade de tal postura e usando o nome de todo mundo que é médico no Brasil. Se não fui consultada, quero ser excluída de tais desatinos”, avisa. “Já disse em meu artigo e repito: “O CFM não me representa quando nega o racismo insidioso e cotidiano nos serviços e profissionais de saúde”.
Confira a íntegra da nossa entrevista com a doutora Fátima Oliveira, que fez questão de que esta repórter a tratasse por você.Vale a pena. Ela não tem papas na língua.
Viomundo – Como médica, negra e feminista, você diria que pacientes negros são vítimas do racismo — velado ou explícito — por parte de médicos, enfermeiros e demais membros da equipe de saúde?
Fátima Oliveira — O racismo na atenção à saúde, seja por parte das instituições ou de profissionais, sobretudo de médicos, é um fato inconteste.
Há várias pesquisas comprobatórias de racismo na atenção e na pesquisa em saúde, no mundo! Duas delas clássicas, aparecem em quase todo livro de bioética. O Estudo do Canto (assistência) e o Caso Tuskegee (pesquisa).
O estudo Canto, coordenado por John Canto, Universidade do Alabama (2000), mostra que negros, independentemente do sexo, têm probabilidades bem menores que brancos de receber tratamento de grande eficácia para ataques cardíacos.
O caso Tuskegee, história clássica de racismo descrita no filme/vídeo “Cobaias”, revela que, de 1932 a 1972, o Serviço de Saúde Pública dos EUA pesquisou, em Tuskegee, no Alabama, 600 homens negros – 399 com sífilis e 201 sem a doença (…). Nos anos 50, chegou a cura para a sífilis, com a penicilina – proibida para as cobaias do estudo Tuskegee. Após 40 anos, 74 sobreviventes. Mais de cem faleceram de sífilis ou de suas complicações. Em 1997, quando Bill Clinton pediu desculpas pelos erros e abusos cometidos pelo governo dos EUA, os sobreviventes eram apenas 8!”.
Viomundo – Há racismo na atenção à saúde no SUS?
Fátima Oliveira — No SUS, nos convênios e nos serviços particulares também! E a razão é elementar: negro ainda é considerado cidadão de última categoria em nosso país de cultura escravocrata, onde nada escapa das práticas racistas.
Eu me formei médica em 1978. Se eu contar as vezes em que como médica negra fui vítima de racismo e o que já presenciei de casos de racismo, daria um “romance”.
Há de tudo, desde a mãe de uma paciente depois que atendi – ouvi a história, examinei, pedi exames, passei e expliquei a receita – perguntou quem seria a médica que atenderia a filha dela. Na lata, disse-lhe: “A senhora quer outra?”
Há a do moço que queria que a mulher dele fosse atendida no pronto-socorro com uma provável DST [doença sexualmente transmissível]. Depois de eu orientar que, ali perto, havia um serviço que funcionava das 7h às 22h específico para aqueles casos, que atendia todo mundo que chegasse e ainda dava o remédio, ele, já com o endereço na mão, disse algo mais ou menos assim: “É nisso que dá uma mulher de fala estranha vir mandar em Minas Gerais”… Mandei que ele completasse o pensamento: “De fala estranha e preta”!
Uma colega dizia que não gostava de atender homem e sempre pedia: “Fátima, me dá uma mulher que eu te dou um homem!” Ia lá nas minhas fichas e escolhia por quem trocar… Levei anos para descobrir que ela evitava mesmo era atender negros – uma técnica de enfermagem cantou a pedra. Havia “Quesito cor” na ficha! Desde então nunca mais permiti troca de fichas.
Racismo explícito de colega, só aquele que o Viomundo publicou em 2013: “Vou chamar a polícia para deixar de ser safado”.
Viomundo — Qual a tua primeira reação ao ler a nota do CFM?
Fátima Oliveira — Fiquei indignada! A rigor, possessa. Porque é um absurdo sem pé e sem cabeça aquela nota. Eu a reli várias vezes, para recuperar um pouco de calma e de “sangue frio” para enfrentar aquela falta de noção, de senso…
Na noite de 27 de novembro fiquei tão angustiada que não conseguia dormir… Naquela mesma noite comecei a escrever a minha coluna semanal de O TEMPO para o dia 2 de dezembro, que já enviei para o jornal, cujo título é: “Qual é a parte do racismo na saúde que o CFM não enxerga?”
E lá pelas tantas da madrugada senti uma pena profunda de quem teve a coragem de escrever aquela Nota do CFM… Pena pelo despudor que a ignorância produz nas pessoas. Pena de quem não se deu conta ainda que o racismo é uma fé bandida! Pena pelo CFM que parece não estar sediado no Brasil! Mas pena também do Roberto D’Ávila, colega que conheci na década de 1990 nos espaços de bioética que estavam despontando no Brasil. Pena, sobretudo, porque sinto que ele desaprendeu bioética para assinar uma Notacomo aquela do CFM… Sim, porque a bioética é antirracista e libertária em sua essência, pois a bioética jamais desconhece e/ou nega as opressões de qualquer etiologia, como eu falo exaustivamente em meu livro: Bioética – uma face da cidadania (Moderna, 1997).
Viomundo – A Nota demonstra que o CFM não tem noção da saúde população negra. Afinal, não basta saber tecnicamente que tais e tais doenças são mais frequentes. A saúde da população negra passa pelo enfrentamento do racismo no SUS, concorda?
Fátima Oliveira — O racismo na área de saúde, assistência e aparelho formador, é o fator determinante de porque o campo da medicina Saúde da População Negra foi construído fora da universidade, embora com o apoio decisivo de professores, como a demógrafa Elza Berquó e Marco Antônio Zago, hematologista, hoje reitor da USP, como relato no capítulo 13 do meu livro Saúde da População Negra, Brasil 2001
É o racismo quem explica porque tantos anos depois da formação teórica do campo (anos 1990) nenhuma Faculdade de Medicina tem Saúde da População Negra como disciplina!
É o racismo quem explica porque Saúde da População Negra não mereceu nenhuma hora de aula no curso ministrado a médicos do Programa Mais Médicos, pelo próprio Ministério da Saúde, o mesmíssimo que criou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra (PNAISPN), em 2009!
É o racismo quem explica porque tal política ficou hibernando durante quatro anos do governo Dilma sob a gestão do ministro Padilha!
O racismo no SUS começa dentro do governo, que encontrou uma política construída com suor e lágrimas e institucionalizada com muita luta e passou quatro anos ignorando-a solenemente. Se eu fosse a ministra Luiza Bairros, depois de dois anos malhando em ferro frio, teria pedido para sair, pelo desrespeito com que a saúde da população negra foi tratada. Mas cada pessoa sabe de si, não é?
O CFM não tem a menor noção do que é Saúde da População Negra e nem da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra. Acusou o golpe e deu atestado de ignorância em sua Nota à Sociedade.
É lamentável! Desde que me entendo por médica, 1978, a endireitização do CFM é datada: a partir de 2000, visões estreitas tem sido a tônica de algumas ações políticas.
E se não estou enganada, ela foi bem explicitada quando da publicação da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2004), do ministro Humberto Costa, que dispensava o BO em caso de gravidez por estupro.
Lembro-me que fui a um evento do CRM de Pernambuco sobre Violência contra a Mulher, em Recife, e tive de pegar o voo após a minha fala (o evento atrasou, prejudicando a minha continuidade nele).
Depois soube que o presidente do CFM da época, que falou depois de mim, só não me chamou de santa, apenas porque a minha posição era diferente da dele (acreditar na palavra da mulher), que alardeava aos quatro costados do mundo que “Os meus médicos não vão fazer aborto previsto em Lei sem BO”!
Viomundo — Ao não reconhecer a existência do racismo no atendimento à saúde no SUS, o CFM não tenta escamotear o racismo da categoria?
Fátima Oliveira — O CFM preferiu o caminho da negação do óbvio. Negar a presença do racismo no cotidiano da atenção à saúde no Brasil é uma falácia, já desmascarada por várias pesquisas, que o CFM tem a obrigação ética e política de conhecer. Mas deu a entender que não conhece, o que eu duvido muito!
Talvez a Nota faça parte de uma tentativa política de manter o confronto com o governo, uma aposta de ser oposição a qualquer preço. Eu só não entendo a finalidade de tal postura e usando o nome de todo mundo que é médico no Brasil. Se não fui consultada, quero ser excluída de tais desatinos. Já disse em meu artigo e repito: “O CFM não me representa quando nega o racismo insidioso e cotidiano nos serviços e profissionais de saúde”.
Viomundo — Quais as consequências do racismo na assistência à saúde em geral?
Fátima Oliveira — Acho que é algo de porte incomensurável. De uma coisa tenho certeza: se médicos dessem conta de atender as pessoas considerando as suas singularidades digamos, biológicas, e o meio em que vivem, diminuiriam as mortes precoces causadas por doenças preveníveis.
Viomundo — Qual peso do racismo na saúde emocional, mental, do paciente negro?
Fátima Oliveira — São desastrosas, destruidoras e desestruturadoras de vidas, porque o que o racismo martela e quer é que introjetemos “Nós não somos nada nesta vida”, como disse Clara dos Anjos, de Lima Barreto (publicado em 1948, 26 anos após a morte do autor)…
Há um grupo que trabalha saúde mental e racismo, o Instituto AMMA Psique e Negritude, de São Paulo, SP. Soube também que, em novembro de 2014, foi criado, numa das gavetinhas do Ministério da Saúde, o GT Racismo e Saúde Mental. O objetivo é “pressionar” o Ministério da Saúde para “Reconhecer o sofrimento psíquico oriundo das relações raciais violentas – vivenciadas pela sociedade negra brasileira – como uma categoria a ser incluída nas linhas de cuidado das RAPS – Redes de Atenção psicossocial”. Dá para entender? Eu não entendo! Mas saber que há gente pelejando na área é alentador.
Viomundo — Em julho do ano passado, você disse em artigo que reproduzimos que a saúde da população negra era tratada com descaso. Disse também que o ex-ministro Alexandre Padilha não compareceu à reunião com a presidenta Dilma, Seppir e representantes do movimento negro. O que acha de o Ministério da Saúde ter lançado agora uma campanha para enfrentamento do racismo no SUS?
Fátima Oliveira — Não é a primeira vez que o Ministério da Saúde torna pública a sua decisão política de que o racismo faz mal à saúde. Na gestão do ministro Humberto Costa, foi feita muita coisa.É a primeira vez no governo Dilma.
Na gestão do ministro Padilha, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra foi engavetada, literalmente. Até escrevi um artigo sobre tal fato e que o Viomundo, como você bem lembrou, republicou: Saúde da população negra enterrada em algum canto do MS.
Lá, eu disse:
“Se não estou enganada, é a primeira vez que a presidenta nos ouve presencialmente. Pelo que li até agora, considerei a reunião boa, pero… faltou Padilha! E parece que ninguém abriu a boca para falar em saúde da população negra, lacuna grave num momento em que o SUS está envolvido em um debate acirrado. Para o pesquisador Marcelo Paixão, 80% dos negros se internam pelo SUS.
Todo mundo reclama que a Rede Cegonha não dá a mínima para o recorte racial/étnico e não há santo que a faça avançar. E perdemos a chance de dizer de viva voz à presidenta que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra está enterrada com uma caveira em algum canto do Ministério da Saúde, um descaso que eu sei que ela não sabe! Elementar: ou manda Padilha transversalizar o recorte racial/étnico em todas as ações da saúde, ou admite a omissão”.
E o motivo principal pelo qual escrevi o artigo foi porque naquela época, julho de 2013, fui contatada pela Seppir para uma interlocução/avaliação da PNAISPN. Recusei e argumentei que não me prestaria ao papelão de avaliar o NADA! Textualmente disse: “Adianto-lhe que não devo ser uma boa interlocutora para a área que você deseja, pois não tenho acompanhado nada do governo sobre saúde da população negra, até porque acredito que não está sendo feito NADA!”
Na verdade, o Padilha deu muita canseira fundamentalista ao feminismo e o meu veredicto é que ele era um “caso perdido” e eu não queria mais uma frente de problemas com ele, além da que ele estabeleceu publicamente porque seria pura perda de tempo! E estou numa idade que respeito muito meu tempo.
Viomundo – E, agora, o que fazer diante dessa estupidez do CFM?
Fátima Oliveira — “Meu bem, meu bem, a sua estupidez”… Se o CFM tiver interesse, estou à disposição para um debate presencial sobre o tema com o pleno do CFM. Embora os conservadores tenham assumido o CFM desde 1999, a recente escalada de “endireitização”, cantada há muito tempo, em assuntos cruciais para o povo brasileiro, precisa ser contida, ou pelo menos precisa de um verniz civilizatório contemporâneo. O CFM “representa” médicos de diferentes ideologias, logo suas ações não podem contemplar apenas uma visão de mundo.
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CFM: NOTA À SOCIEDADE
O Conselho Federal de Medicina (CFM) – em nome dos 400 mil médicos brasileiros – repudia o tom racista de campanha lançada pelo Ministério da Saúde, que desconsidera os problemas estruturais de atendimento que afetam toda a população.
Os médicos são contra qualquer tipo de preconceito na assistência a pacientes nas redes pública e privada. O Código de Ética Médica em vigor já estabelece que os médicos devem zelar para que “as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada à herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade”.
Por outro lado, o CFM reitera sua preocupação com as condições de trabalho e de atendimento oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o qual tem sido penalizado pelo financiamento limitado, fechamento de leitos, falta de insumos e medicamentos, e ausência de uma política de recursos humanos. Na verdade, são essas as causas do mau atendimento para a população no SUS, não importando questões de gênero, classe social ou etnia.
É tarefa dos gestores de todas as esferas – federal, estadual e municipal – tomarem providências para resolver estas questões, cujo enfrentamento efetivo contribuirá, sem dúvida, para melhorar a qualidade da assistência e reduzir os indicadores de mortalidade e morbidade.
Sem a adoção de medidas contra esses problemas, os pacientes que recorrem à rede pública continuarão a ser testemunhar o desrespeito aos princípios constitucionais do SUS (universalidade, equidade, integralidade), o que configura uma agressão aos direitos individuais e coletivos e à dignidade humana.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Brasília, 27 de novembro de 2014
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UNEAGRO: NOTA AO POVO BRASILEIRO
Após a realização da Conferência Mundial da ONU contra o racismo, em 2001, vimos reforçando e ampliando as denúncias de que o racismo é estrutural, contaminando não só elementos da sociedade, mas também as instâncias dos governos.
Portanto, transversaliza-se institucionalmente, por meio das relações de poder e nas articulações políticas, sociais, econômicas e culturais das sociedades, Estados e governos.
Dessa forma, apoiamos a iniciativa do Ministério da Saúde ao lançar campanha específica para combater o racismo nas esferas da saúde pública. Setor que ainda hoje a população negra vivencia um drama quase invisível para quem não é a vítima dessa logística ruim.
Não podemos esquecer, portanto, que a população negra brasileira é quase 51%, e as mulheres negras continuam sendo maioria entre as vítimas de violência e o desrespeito dos seus direitos.A juventude negra, por sua vez, continua sendo a maioria entre os jovens que sofrem da agressão pelos órgãos de segurança.
Ainda temos muitas pessoas morrendo de agravos sem diagnóstico, pois a ausência de um acolhimento humanizado ainda exclui muitas pacientes dos serviços públicos de saúde. Alguns profissionais da área dedicam menos tempo para um(a) negro(a) na hora da consulta médica e dos exames.
Precisamos lembrar também que é papel dos órgãos públicos de governo educar a população para a redução das desigualdades, porque saúde não é apenas o medicamento e o médico. Saúde é qualidade de vida, associada ao bem-estar e à cidadania. Além do que, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por unanimidade, a legitimidade da adoção das Ações Afirmativas nas políticas públicas de educação. Agora, queremos que o Estado brasileiro, com base no artigo 3º da Constituição Brasileira, inclua essas ações afirmativas no setor da saúde, estratégicas para a eliminação das desigualdades sociais e raciais. Porém, queremos avançar não só com a Portaria 992/2009, que institui a Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra, mas principalmente, que o SUS torne corriqueira a inserção, o acolhimento e a assistência transversal e integral da população negra brasileira.
Assim, apoiamos a campanha Racismo faz Mal à Saúde, criada pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Direitos Humanos. Convocamos a adesão a essa campanha aqueles que só têm o serviço público de saúde como única alternativa nas horas mais difíceis da vida, que é a hora da doença.
Racismo faz mal à saúde. Denuncie!
UNEGRO-UNIÃO DE NEGROS PELA IGUALDADE
PS do Viomundo: Nós também apoiamos esta campanha. Lembre-se sempre: racismo faz mal à saúde. Enfrente-o. Não se cale. Denuncie todo ato de discriminação na assistência à saúde. Ligue 136.