Figura 7 . Amazônia Legal. A rodovia BR-319, ligando o arco de desmatamento com Manaus, daria aos agentes de desmatamento deste arco acesso às áreas que já tem estradas a partir de Manaus, enquanto estradas planejadas conectando com a BR-319 abririam a parte oeste do Amazonas.
Novas rodovias estão trazendo a atividade de desmatamento para o coração da Amazônia. O caso mais crítico é a reconstrução planejada da rodovia abandonada Manaus-Porto Velho (BR-319), que conectaria o arco do desmatamento com a Amazônia central, trazendo os atores e processos de Rondônia para grandes áreas no Amazonas e Roraima que possuem estradas dando acesso a partir de Manaus, bem como a abertura do grande bloco de floresta intacta na porção oeste do Estado do Amazonas por meio de estradas planejadas, como a AM-366 [10, 11]. A primeira versão do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ([12], vol. 1, p. 205) para a BR-319 até mesmo apresentou o Parque Nacional de Yellowstone como o cenário esperado para o desmatamento, com turistas passeando de carro pela área em uma “estrada-parque” sem cortar uma única árvore [13, 14] (Figura 8).
Figura 8 . Mapa do Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, reproduzido do primeiro EIA da BR-319 [12], apresentado para mostrar como a rodovia poderia ser uma “estrada-parque” sem desmatamento. Infelizmente, uma fronteira na Amazônia é muito diferente de Yellowstone
A natureza irreal desse retrato de uma fronteira amazônica seria difícil de exagerar. Em uma vida passada, este autor foi funcionário do Serviço Nacional de Parques dos Estados Unidos em um parque não muito distante de Yellowstone, e ele pode testemunhar que o cenário de Yellowstone representa um mundo completamente diferente do caos de uma fronteira amazônica como a da rodovia BR-319. A ilustração reveladora de Yellowstone desapareceu do EIA atual [15], mas o EIA ainda afirma que a BR-319 será uma “estrada-parque” onde a governança prevalecerá.
Embora os políticos de Manaus afirmem que “não há impacto na BR-319” [16] e que a rodovia será “um exemplo sustentável para o mundo” [17], essas descrições não guardam nenhuma relação para a realidade. Um sinal disso é a discussão que já dura anos sobre quem vai pagar pelos dois postos de fiscalização que o IBAMA exigiu como pré-condição para o licenciamento, com um posto a ser implantado em cada ponta do “trecho do méio” da rodovia. Nem o governo federal nem o estadual querem pagar, e a proposta mais recente sugerida pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNIT) em reunião do Forum da BR-319 é de pedir aos governos dos municípios ao longo da rodovia que paguem.
Se os governos não estão dispostos a pagar por dois simples postos de fiscalização, a ideia de que um programa massivo de governança será implantado para proteger as dezenas de unidades de conservação e terras indígenas que seriam impactadas [18] é obviamente uma ficção. “Cenários de governança” irrealistas, como o do EIA, servem como desculpas para justificar o licenciamento de rodovias que implicam em impactos muito reais. [19]
A imagem que ilustra este artigo é de autoria de Michael Dantas/WWF-Brasil, e mostra caminhões transportando toras de madeiras de desmatamento ilegal, na BR-319, próximo a Porto Velho, RO em setembro de 2019.
Notas
[1] Kirby, K.R., W.F. Laurance, A.K. Albernaz, G. Schroth, P.M. Fearnside, S. Bergen, E.M. Venticinque & C. da Costa. 2006. The future of deforestation in the Brazilian Amazon . Futures 38: 432-453.
[2] Laurance, W.F.,M.A. Cochrane, S. Bergen,P.M. Fearnside, P. Delamônica, C. Barber, S. D’Angelo & T. Fernandes. 2001. The future of the Brazilian Amazon . Science 291: 438-439.
[3] Pfaff, A.S.P. 1999. What drives deforestation in the Brazilian Amazon? Journal of Environmental Economics and Management 37(1): 26–43.
[4] Pfaff, A. S.P., J. Robalino, R. Walker, S. Aldrich, E. Reis, S. Perz, C. Bohrer, E. Arima, W. Laurance & K. Kirby. 2007. Road investments, spatial spillovers, and deforestation in the Brazilian Amazon. Journal of Regional Science 47(1): 109–123.
[5] Soares-Filho, B.S., D.C. Nepstad, L.M. Curran, G.C. Cerqueira, R.A. Garcia, C.A. Ramos, E. Voll, A. Mcdonald, P. Lefebvre & P. Schlesinger. 2006. Modeling conservation in the Amazon Basin . Nature 440(23): 520-523.
[6] Fearnside, P.M. 1988. Causas de desmatamento na Amazônia brasileira . Pará Desenvolvimento 23: 24‑33.
[7] Fearnside, P.M. 1987. Deforestation and international economic development projects in Brazilian Amazonia . Conservation Biology 1(3): 214‑221.
[8] Rosa, I.M.D., D. Purves, C. Souza, Jr. & R.M. Ewers. 2013. Predictive modelling of contagious deforestation in the Brazilian Amazon . PLoS ONE 8(10): e77231.
[9] Rosa, I.M.D., D. Purves, J.M.B. Carreiras & R.M. Ewers. 2014. Modelling land cover change in the Brazilian Amazon: Temporal changes in drivers and calibration issues . Regional Environmental Change
[10] Fearnside, P.M., 2020. BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira . Amazônia Real , 06 de outubro de 2020.
[11] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020.b Região Trans-Purus, a última floresta intacta . Amazônia Real .
[12] UFAM. 2009. Estudo de Impacto Ambiental – EIA: Obras de reconstrução/pavimentação da rodovia BR-319/AM, no segmento entre os km 250,0 e km 655,7 . Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, Amazonas. 6 Vols. + Anexos.
[13] Fearnside, P.M. 2015. Highway construction as a force in destruction of the Amazon forest . In: R. van der Ree, D.J. Smith & C. Grilo (eds.) Handbook of Road Ecology . John Wiley & Sons, Oxford, Reino Unido. p. 414-424. https://doi.org/10.1002/9781118568170.ch51
[14] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central . Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.
[15] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70 . DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.
[16] Diário do Amazonas. 2015. Parlamentares dizem que não há impacto ambiental na BR-319 . Diário do Amazonas , 29 de outubro de 2015, p. 4.
[17] Amazonas em Tempo . 2020. BR-310 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputados . Amazonas em Tempo , 22 de setembro de 2020.
[18] Ferrante, L., M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas . Amazônia Real.
[19] Esta série é uma tradução atualizada de: Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon . In: H. Shugart (ed.) Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, E.U.A.