Por Luis Nassif em Jornal GGN –
Um paiá de Monai, bonzo bramá
Primaz da cafraria do Pegu,
Quem sem ser do Pequim, por ser do Açu,
Quer ser filho do sol, nascendo cá.
Tenha embora um avô nascido lá,
Cá tem três pela costa do Cairu,
E o principal se diz Paraguaçu,
Descendente este tal de um Guinamá.
Que é fidalgo nos ossos cremos nós,
Pois nisso consistia o mor brasão
Daqueles que comiam seus avós.
E como isso lhe vem por geração
Tem tomado por timbre em seus teirós
Morder os que provêm de outra Nação.
Gregório de Mattos
Gregório de Mattos criou a figura do “fidalgo caramuru”, descendente de português com índia, que pretenderia origens nobre, como fruto do encontro da aristocracia europeia com a aristocracia selvagem.
Há muito tempo, Fernando Henrique Cardoso é nosso “fidalgo caramuru”, o filho de generais, com um pé na cozinha e um olhar no primeiro mundo. Como Pedro Malasartes, outro herói miscigenado, há muito tempo FHC se desprendeu da ambição vã de liderar partidos, conduzir povos, mudar nações, porque dá trabalho. Deve ter desistido lá pela adolescência, depois que largou as Marchas do Petróleo é Nosso que traziam muito orgulho para a família e pouco poder aos seus – além de serem muito trabalhosas.
Sempre contou com a mão do destino para fazer história. Na adolescência, filho de família histórica; na idade adulta, beneficiado por um golpe que lhe permitiu voltar para o país com fama de herói. O poder lhe caiu no colo de graça, assim como o Plano Real.
Mas, como um autêntico Malasartes, sua sopa de pedra visa conquistar a eternidade sem precisar se esfalfar muito com as coisas terrenas. O seu partido se esfacela. E o máximo que ele ousa são platitudes em forma de artigos para velhos jornalões.
Quando se trata de biografia, porém, FHC luta como um leão, esbraveja, tenta encontrar interpretações para seu reinado.
Quando terminou seu mandato, leu a biografia de Franklin Delano Roosevelt. E enxergou-se do outro lado do espelho de Roosevelt. A biografia mostrava como Roosevelt tinha a capacidade de iludir políticos, juízes, dizendo uma coisa e fazendo outra. E FHC se viu um Roosevelt brasileiro. Sem New Deal, um detalhe.
Nos seus tempos de glória, mandava vir do Rio de Janeiro o superlobista Jorge Serpa, o homem que atravessou todos os governos desde o Marechal Dutra. E apenas para a pergunta que a Bruxa fez para o espelho:
– Diga, Jorge, quem foi maior: Juscelino ou eu?
E Jorge, naturalmente, respondia:
– Claro que é você, Fernando!
E voltava para o Rio de Janeiro com mais um causo do príncipe, que fazia as delícias dos frequentadores do restaurante Mosteiro.
Digo tudo isso para enfatizar que a luta maior de FHC é para encontrar um significado para sua história, uma interpretação, uma teoria a posteriori que o possa colocar no panteão dos grandes nomes da pátria, em patamar mais alto que o metalúrgico abominável, que ele aprecia com os olhos de Salieri, e amaldiçoa com o pior dos sentimentos: a inveja histórica.
Assim como Salieri, FHC tem mais discernimento que a média dos seus seguidores, para entender a grandeza do mito Lula. O pior é isso: ele entende. E sabe que, independentemente do julgamento de amanhã no TRF4, a perseguição implacável da Justiça, da mídia, do Ministério Público a Lula, trouxe mais um capítulo épico à lenda do metalúrgico desbocado, orgulhoso da sua origem, que soube encarnar como nenhum outro, nem Garrincha, a verdadeira alma nacional, e com uma postura de estadista que nenhum outro, nem Getúlio, conseguiu igualar.
Essa é a tragédia de Salieri.
Absolvido, Lula tem o caminho pronto para voltar ao Planalto. Condenado, exporá ao mundo a perseguição de quem foi vítima, e a pequena dimensão política daquele que, fosse um pouco maior, teria iniciado o grande pacto nacional, ou, na pior das hipóteses, o desprendimento de se colocar contra o arbítrio.
Se FHC tivesse tido a grandeza de montar o pacto de salvação nacional com Lula, a esta altura estaria se ombreando com ele, dois gigantes empenhados em passar por cima de diferenças, pelo bem maior do país.
Não tendo a dimensão política exigida para os grandes gestos, a glória ou o martírio de Lula será o epitáfio para FHC, um estadista incompleto, vazio, fútil.
Para ele, o Requiém de Salieri. Não merece o de Mozart.