O dia em que Esquivel inseriu a Mafalda em seu painel sobre vítimas da ditadura na Argentina

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Por Ivete Caribé da Rocha, compartilhado de Viomundo – 

Quino foi sempre um amante da paz e da liberdade de expressão, o que fez com que fosse muito perseguido pela ditadura argentina, especialmente devido à sua contestadora e libertária filha Mafalda.

Ivete Caribé: O dia em que Esquivel inseriu a Mafalda em seu painel sobre vítimas da ditadura na Argentina
Mafalda com seu vestido e laço rosas no painel de Adolfo Pérez Esquivel. Foto: Ivete Caribé Rocha

Junto com a sua mulher Alicia, teve de deixar o seu país e viver longo exilio em Milão, na Itália.

Assim, foi natural a aproximação dele com o compatriota Adolfo Pérez Esquivel, que também, perseguido pela ditatura argentina,  teve de deixar o país.




Anos mais tarde, ao voltarem do exílio,  continuaram a luta pela paz, pelos direitos humanos e pela memória.

A morte de Quino em 30 de setembro e o emocionante artigo de Adolfo Pérez Esquivel sobre o amigo me trouxeram à memória o dia em que vi o nosso querido Prêmio Nobel da Paz desenhar a  Mafalda numa homenagem a Quino e sua personagem mais famosa e significativa para gerações.

Sim, sim, Esquivel é um grande painelista.

Esquivel havia  pintado um grandioso mural na Igreja de Santa Cruz – Casa de Nazaré, em Buenos Aires,  representando as vítimas do terrorismo de estado na Argentina.

Mas antes de entrar no painel, que eu conheci antes da sua inauguração, é preciso relembrar a história que envolveu as irmãs do Mosteiro e Igreja de Santa Cruz.

Tudo começa quando elas abriram as portas do mosteiro para as mães dos desaparecidos pela ditadura, conhecidas como Madres da Praça de Maio, e outros militantes políticos.

O episódio mais cruel relacionado às irmãs moradoras do Mosteiro de Santa Cruz aconteceu em 8 de dezembro de 1977.

Duas freiras francesas — Alice Domon e Léonie Duquet —  a fundadora da Associação Mães da Praça de Maio, Azucena Villafor De Vicenti, e as companheiras Angela Auad, Esther Ballestrino de Careaga e Ana Ponce de Bianco — foram sequestradas no mosteiro, onde se encontravam, e levadas para Escuela de Armada — a ESMA.

Aí, foram torturadas por dez dias e depois levadas para os chamados voos da morte.

Embarcadas em um avião, foram jogadas ainda vivas em alto mar, prática comum na ditadura argentina.

Diferentemente de outros casos, em que os corpos nunca submergiram, os delas apareceram em balneários da província de Buenos Aires

Imediatamente, os militares os enterraram como desconhecidos, em um cemitério clandestino.

Até que, em 1995, Adolfo Francisco Scilingo,  ex-oficial da Marinha argentina que fez parte da repressão de seu país, revelou ao jornalista Horácio Verbitsky os métodos de tortura e mortes praticados pela repressão durante a ditadura argentina.

Além de detalhar a metodologia de extermínio via voos da morte, Scilingo, que sevia na ESMA, contou a metodologia de extermínio via vôos da morte e onde estavam enterradas as freiras e as mães sequestradas no Mosteiro de Santa Cruz.

Calcula-se que  4 mil pessoas  foram mortas pelo terrorismo de Estado que se estabalecera na Argentina.

Scilingo deu os nomes e codinomes dos oficiais que atuaram na ESMA.

Suas revelações levaram à descoberta dos restos mortais de Azucena Villaflor, fundadora da Associação das Mães da Praça de Maio, e dos corpos das irmãs de Santa Cruz, identificados, em 2005, pela equipe de antropologia forense da Argentina

As revelações de Scilingo também possibilitaram a partir de 2008 o início dos julgamentos dos agentes militares e civis, que cometeram os graves crimes de lesa humanidade.

Porém, foi a criação dos Tribunais Especiais de Julgamento dos crimes da ditadura, em 2011, que impulsionou a localização e condenação de inúmeros agentes da ditadura argentina.

Sem dúvida alguma um marco.

Pois bem, Esquivel  faz aniversário em novembro.

Como fazemos todos os anos, em 2011, eu e minha amiga Marianne viajamos para Buenos Aires para comemorar o aniversário dele.

Naquele ano,  Esquivel nos convidou para conhecer o mural de sua autoria no Mosteiro Santa Cruz, que seria inaugurado em 2 de dezembro de 2011. Um grandioso painel, representando as vítimas do terrorismo de estado na Argentina.

Muitos famosos vítimas da ditadura lá, como o arcepisbo D. Angeleli, o padre Carlos Mujica, as mães da Plaza de Mayo e as irmãs do Mosteiro de Santa Cruz estavam retratadas numa obra magnifica e de muito significado histórico.

Nesse dia, uma das moradoras do mosteiro logo após ver pela primeira vez o painel questionou Adolfo Pérez Esquivel: “É uma obra fantástica, mas por que não está Mafalda?”

Pensei que estava brincando.

Pra mim, aquela obra não comportava a figura da Mafalda.

Mas, Esquivel, prontamente pegou pincel e desenhou o contorno da figura da Mafalda.

A sensibilidade do artista e do homem que sobreviveu à prisão e a um vôo da morte (felizmente não concluído) junto com toda a história de Quino e sua Mafalda inspiraram-no em segundos sobre a importância daquela homenagem.

O desenho ficou inconcluso até a inauguração do painel, em 02 de dezembro, mas na apresentação pública, Adolfo Pérez Esquivel, segundo matéria publicada em 05/12/2011, no Jornal Centro Nueva Tierra:

“Al finalizar su presentación Adolfo anunció, “todavía no está terminado” y, señalando a Mafalda, esa pensadora tan original que no podía faltar en la obra dijo “tengo una diferencia con ella, a mi me gusta la sopa, a ella no”.

Em 8 de dezembro de 2019, novamente fomos convidadas por Adolfo Pérez Esquivel, para festejar os 39 anos do recebimento do Prêmio Nobel da Paz, que comemorou no Mosteiro Santa Cruz – Casa Nazaré.

Registramos, em foto, o painel fora terminado.

Malfalda estava ali, com seu vestido e laço rosas.

Quino vive em Mafalda!

Esquivel, devido ao forte comprometimento do mosteiro com a resistência contra a última ditadura argentina, assim denominou o seu painel:“Y lo reconocieron al partir el Pan… Pinceladas sobre un pueblo que confiando en la fuerza del amor sigue buscando la Justicia y la Verdad”.

Ivete Caribé da Rocha 03/10/2020.

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