O dia em que fui sabatinado

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Por Camilo Vannuchi, Facebook – 

Hoje, no restaurante, um garoto de uns 14 anos me interpelou quando eu já me dirigia à porta:




– Seu pai foi ministro dos Direitos Humanos?

Olhei para ele. Ele não havia me reconhecido. Nem sabia quem era meu pai. Foram os donos do restaurante, amigos novos, que haviam contado a ele instantes antes.

– Foi – respondi.

Ele me olhou com curiosidade.

– Como é esse lance de direitos humanos?

Engoli a seco.

“Tô perdido”, pensei. Nunca ninguém me perguntou o que são direito humanos. Muito menos um adolescente. Busquei maquinar rapidamente alguma estratégia para (tentar) explicar direitos humanos sem precisar sentar e ficar mais uma hora ali, proseando.

– Ah, direitos humanos é uma formulação que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, no âmbito da ONU.

Eu menti, é claro, porque fiquei com preguiça de voltar até a Revolução Francesa, ou quiçá à Antígona ou outros textos clássicos que, séculos antes, já esboçavam de alguma forma conceitos de direitos humanos.

– Você sabe o que é a ONU, né?

– Sim, Organização das Nações Unidas – o rapaz frisou, com um olhar que parecia me dizer “dããã, não sou idiota”.

Engoli a seco pela segunda vez.

– Então – eu tentava ganhar tempo -, em 1948 a ONU publicou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento com uma série de garantias que devem ser estendidas a todas as pessoas, em todos os países, inclusive a criminosos ou inimigos de guerra. Por exemplo, é legítimo prender alguém que tenha sido condenado por um crime, mas não é legítimo torturar, por exemplo.

– Nem construir campos de concentração – ele acrescentou.

Bingo! Comemorei. Seu comentário era perfeito.

– Quer ver outra coisa? – acrescentei. – No Brasil existe pena de morte?

– Não.

– Então não se pode matar, mesmo que seja um criminoso. Mesmo assim, muita gente é executada no Brasil por ter cometido um crime, por ser apenas suspeito ou, em certos casos, porque mora na rua, usa crack, incomoda, ou só porque é pobre. Quem faz isso age fora da lei.

O rapaz assentiu.

– Aliás – avancei duas casas -, mesmo se existisse pena de morte no Brasil, seria preciso abrir um inquérito, reunir provas, garantir ao réu o direito de defesa, julgar, condenar e só depois aplicar a pena. Não é o policial que pode decidir matar alguém. Policial não é juiz.

O rapaz parecia entusiasmado.

– Mas não é só isso – continuei, transformando minha insegurança em verborragia, já envergonhado por improvisar uma palestra quando deveria apenas dar uma resposta. – O guarda-chuva dos direitos humanos engloba outras garantias. Ninguém pode ser abusado sexualmente, ninguém pode castigar uma criança fisicamente, também não pode fazer sexo com criança ou constrangê-la a trabalhar, ninguém pode discriminar alguém por causa da cor ou porque a pessoa é gay, nem humilhar. Se uma criança é pega roubando, por exemplo, o jornal não pode mostrar o rosto dela e dizer o nome completo. Porque é criança, e os direitos das crianças garantem que ela não seja exposta.

Neste momento, a mãe do garoto levantou-se e entrou na conversa.

– Quando meu filho foi sequestrado, não teve ninguém dos direitos humanos lá.

“Pronto”, pensei. “Tava demorando”. Agora vai começar aquele papo de defensor-de-bandido, de tá-com-pena-leva-pra-casa, e eu vou acabar perdendo a disputa por falta de traquejo. Que falta da porra faz um media-training…

– Como foi isso? – perguntei, tentando ganhar mais um pouco de tempo.

– Ele tinha 6 anos. E reconheceu uma das sequestradoras. Ela falava que não era ela e meu filho dizia: “como não, você não lembra que era você que me dava nescau e bolacha?” Aí ela caiu no choro.

– Era ela mesma?

– Era, menino…

Até ali, eu ainda não tinha entendido aonde ela queria chegar. Arrisquei:

– Lidar com direitos humanos não significa defender a impunidade do sequestrador. O sequestrador deve ser punido. A polícia, a delegacia, a prisão, há todo um aparato de segurança e justiça que deve se encarregar dessa punição. Ocorre que o Estado também pratica violência e ilegalidade. E, normalmente, as estruturas de segurança e justiça carecem de instrumentos capazes de intervir para que essas violações sejam evitadas. Por isso que tem gente que diz que direitos humanos defende bandido. A turma dos direitos humanos vai atuar, por exemplo, para que uma pessoa suspeita não seja tratada como bandida sem ser. E para que um criminoso, como essa sequestradora, cumpra a pena que lhe foi imposta, mas que não seja assassinada nem pendurada num tronco com fios elétricos na vagina.

Olhei para a cara daquela mãe já esperando uma reprimenda, uma tréplica. Sua resposta me surpreendeu.

– Pois é. Meu filho tinha 6 anos e teve que reconhecer a mulher. Disseram que a gente ia ficar separado, protegido em outra sala, e que ele ia ver a mulher mas a mulher não ia ver ele. Sabe aquelas janelas que de um lado parecem espelhos? Chegando lá, botaram um na frente do outro e o policial perguntou: “é ela ou não é?”

Arregalei os olhos. CARALHO! Obrigaram um moleque de 6 anos a reconhecer sua sequestradora assim, cara a cara! Não apenas depositaram no moleque a responsabilidade da identificação como atentaram contra sua integridade física, assumindo o risco de vingança, represália…

– Nossa, é isso que não pode acontecer – emendei. – O Estado deveria zelar pelo cidadão, e não permitir esse tipo de coação. Uma criança de 6 anos…

– Mas a quem recorrer, né? – a mãe comentou. – Naquela época, pelo menos, a gente não sabia como fazer, para quem reclamar. Eu podia ter denunciado? Por isso que eu digo que, no sequestro do meu filho, não teve ninguém dos direitos humanos.

Verdade, pensei. Embora oito anos atrás já houvesse entidades de defesa da criança e do adolescente, ouvidoria na polícia, Condepe e outras instâncias, quem sabe o que fazer numa situação dessas? Até hoje. Ninguém sabe.

– Tem razão – falei. – É uma batalha muito desigual. Precisava ter mais. Um disque denúncia com campanha, secretarias de DH em todos os municípios… O ideal mesmo, nesse caso, seria que toda delegacia tivesse uma pessoa ligada a direitos humanos para evitar violações e constrangimentos, tanto dos criminosos quanto das vítimas, como foi o caso de vocês.

O garçon chegou com uma enorme travessa.

– Bom, vamos comer. Tá servido?

– Não, obrigado. Pode sentar. Já almocei. Uma dobradinha ótima, aliás.

O garoto me estendeu a mão.

– Pô, valeu pela conversa. Muito legal ouvir sobre isso.

– Ôpa. Valeu!

Ufa.

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