O dia em que joguei contra o “Pelé”

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos coloca na arquibancada para vermos o momento em que ele, sim nosso cronista, jogou contra um tal de “Pelé”. Bom, quem acompanha esta coluna sabe do que é capaz o nosso craque cronista. Não é que ele se colocou em campo para jogar com o atleta do século? Será? Por via das dúvidas, pedi autorização, que me foi dada, para colocar o nome do rei da bola entre aspas (Washington Araújo).

O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer (Carlos Drummond de Andrade)




Sem muito alarde eles chegaram ao campinho e pediram para jogar. Nenhum de nós disse não, uma vez que o campinho de grama sintética do Gericinó não nos pertence. Estávamos ali a jogar a sagrada pelada de todo sábado. Apenas isso.


Eram todos na faixa de seus cinquenta anos para lá. Nós, excetuando a minha pessoa, éramos muito mais jovens. Só que futebol não é apenas juventude, senhores. Tomamos um verdadeiro banho de bola daquele bando de coroas, um futebol tão digno de nossas tradições eu sinceramente ainda não tinha visto assim em campinho de várzea.


Como eles jogavam? Movimentavam-se como se por música em um estilo que me lembrou um pouco do Flamengo da década de 1980. Eles eram mais rápidos do que nós na troca de posição, nos passes curtos, na movimentação, nos pontos futuros. A bola ia de pé em pé, sendo tratada com todas as regalias que merece.


Eu logo saquei que o cérebro deles era um homem negro, baixote, um tal de “Pelé”, que só dava passe de primeira. Por vezes me pareceu que ele só dava meio toque. O resto o corpo fazia. Enfim, todos eram bons jogadores, se conheciam, na certa jogavam havia tempos, mas o tal do “Pelé” tinha algo muito acima da média. Refinamento, inteligência, grandeza de espírito, estirpe.


As partidas, como é comum em peladas, eram de dez minutos ou dois gols, o que viesse primeiro. Eles nos venceram diversas vezes, tirando time após time. Não conseguíamos sair do ferrolho da marcação alta. Eu perdi bola, fui sufocado na lateral, salvei gol em cima da linha a exemplo do bons beques. Fiz o que pude. Eu não era páreo para eles, mas, sabe como é que é, é uma pelada, isto é, é a vida naqueles dez minutos.


E o “Pelé” continuava a conduzir o seu escrete de maneira elegante, limpa, sem afobação, sem endurecer o jogo desnecessariamente. O cenário não mudou nem mesmo quando o meu filho, que é jovem e habilidoso, entrou. Apesar de ouvirmos um tal de marca o Sávio para lá, marca o Sávio para cá, Caray, o moleque é liso, sabíamos qual era o time que estava causando aquele alvoroço sem fim.


Como era um recreativo, nenhum deles chegou para rachar em dois o pobre do Sávio que lhes driblava. Creio que meu filho tinha encarnado não o Sávio, mas o galinho de Quintino do bons e velhos tempos cujos vídeos a gente vê no YouTube.

O garoto jogou muito, driblando para frente, sem firulas, passando a bola na hora certa e se apresentando para receber a bola nas costas do zagueiro. Atento a tudo, “Pelé” com um gesto ou com um olhar mandava dobrar a marcação, cercar, não dar o bote ou só dar o bote na hora H.


Foi quando vencemos uma única vez. 2 X 1. Vitória magra mas importantíssima. Eles não eram imbatíveis. Fim de papo. Ou melhor, início de papo.


Apertamos a mão. Fiz questão de cumprimentar cada jogador do time adversário, pois, mais do que vencer, aprecio o futebol bem jogado e era isso o que eu tinha visto. “Pelé” ficou fazendo graça do meu filho, dizendo que nem barriga ele tinha. “Eu tenho 54 anos”, disse ele, “vou jogar enquanto o bom Deus permitir”.


Do jeito que o pessoal veio foi embora. Era aniversário de um dos da turma e a equipe precisava, digamos, se reidratar.


Na semana seguinte, houve um torneio entre quatro times. Adivinha quem foi campeão? O time do “Pelé”, é claro. E olha que no primeiro jogo eles pegaram um time bem mais jovem do que eles, no qual tinha um garoto que se não fosse tão individualista tinha tudo para estar, sei lá, entre os crias de Xerém. O time do “Pelé” venceu por 3 X 1.


E o meu time? Meu filho não foi, tinha prova. Perdemos as duas partidas que disputamos, fazer o quê? E ainda levei um ovinho e nem Páscoa era. Fica para próxima a vingança, que eu sou forte feito um jabuti de lenda indígena. Deixa estar com o velhinho aqui, o aprendiz de Neymar ainda vai criar barriga.


Eu não queria estar na pele de quem tentou marcar “Pelé”, o que só toca de primeira, o capitão do time da Turma da Siri, que venceu a final pelo elástico placar de 6 X 0. Era o que eu pensava enquanto assistia com os dedos enfiados nas telas do alambrado, um gol após outro.

Imagem da capa do post: como não obtivemos foto do cronista César jogando contra o Pelé, reprouzimos esta imagem de uma cartaz no México, Copa de 70.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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