Uma carta musicada para Lennon e McCartney que pode não ter chegado aos ouvidos deles, mas, certamente, chegou nos corações de milhões via o “carteiro” Milton Nascimento. Lô Borges, Mário Borges e Fernando Brant juntos num domingão que pedia macarrão (rimou), só podia vir música da boa. E veio “Para Lennon e McCartney”, conforme conta Ruy Godinho, numa deliciosa história relatada pelos três autores. Ah, e veio um delicioso macarrão também.
Vamos a mais uma história cantada da série “Então, foi Assim?”, que conta como belas músicas brasileiras foram feitas. Antes, uma viagem no tema cartas musicais. O Ruy Godinho é assim: para contar uma história, ele conta muitas. Todas bem gostosas de ler.
Ouçam a música, leiam o texo:
PARA LENNON E McCARTNEY
Em fevereiro de 2015, o compositor e escritor Márcio Borges lançou o livro Cartas da Humanidade: civilização escrita à mão (Geração Editorial, 2015), no qual traduziu, compilou e analisou o contexto ambiental, político e conjuntural de cerca de 140 cartas escritas, enviadas ou trocadas em diversos momentos, por vários personagens célebres ou desconhecidos, que remetem ao ano 6000 a.C. até 2008 d.C.
A esse tipo de estudo dá-se o nome de epistolografia, relativo a epístolas, que quer dizer, em tradução simples, missivas, cartas, bilhetes, recados emitidos em distintas épocas.
Um bom exemplo de epistolografia foi o realizado a partir da troca de cartas entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, que mantiveram extensa correspondência iniciada em 1924, a partir de um encontro entre os dois em Belo Horizonte. Embora tenha sido interrompida em alguns períodos, se estendeu até a morte de Mário, em 1945.
Publicadas no livro A Lição do Amigo (Companhia das Letras, 1982), as cartas trocadas entre os dois são de enorme importância para o estudo do início da obra poética do mineiro, bem como as opiniões relativas à lírica, ao modernismo, contribuições, interferências e influências de Mário no fazer poético de Drummond.
Existem também no cancioneiro popular as músicas com propósitos epistolares.
A carta (Benil Santos/Raul Sampaio), gravada por Erasmo Carlos: Escrevo-te estas mal traçadas linhas meu amor/porque veio a saudade visitar meu coração/espero que desculpes/os meus errinhos por favor/nas frases desta carta/que é uma prova de afeição…
Antonico (Ismael Silva), em que o autor expõe de forma coloquial um pedido dramático de auxílio para um amigo necessitado, o Nestor. Na época, o autor vivia situação semelhante ao Nestor, uma vez que passou três anos na cadeia (de 1936 a 1939). Estava retornando ao cenário artístico e não tinha emprego. Mas negou enquanto pôde que o samba tivesse conotação autobiográfica.
Segundo o ativista cultural Hermínio Bello de Carvalho, em entrevista ao portal Gafieiras, Antonico é a maior carta de solidariedade humana que ele conhece: Ôh Antonico vou lhe pedir um favor/que só depende da sua boa vontade/é necessário uma viração pra o Nestor/que está vivendo em grande dificuldade…
Carta ao Tom 74 (Toquinho/Vinicius de Moraes), dirigida ao maestro soberano Antônio Carlos Jobim. Nela, Toquinho e Vinicius relembram com saudosismo um tempo feliz, em que Ipanema era só felicidade: É meu amigo só resta uma certeza/é preciso acabar com essa tristeza/é preciso inventar de novo o amor.
Meu caro amigo (Francis Hime/Chico Buarque), sobre uma fita cassete em forma de carta, dirigida ao dramaturgo Augusto Boal, que se encontrava no exílio em Portugal: Meu caro amigo me perdoe, por favor/se eu não lhe faço uma visita/mas é que agora apareceu um portador/mando notícias nessa fita (…) Mas o que eu quero lhe dizer que a coisa aqui está preta. O que bem poderia referir-se aos temerários tempos atuais (2016).
No entanto, a música foi composta há 40 anos, pelos idos de 1976, na época trevosa da ditadura militar. Assim como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros brasileiros contrários ao regime, Boal teve de ir para o exílio, para salvar a pele.
Os mineiros Márcio Borges, Lô Borges e Fernando Brant também são responsáveis pela criação de uma música epistolográfica, que se tornou um hino nas Minas Gerais e nada mais é do que um simples recado para os dois mais importantes integrantes dos Beatles, grupo que influenciou o movimento mineiro Clube da Esquina. A música é Para Lennon e McCartney, que em seu processo de criação envolveu música, farra, cerveja, amizade, alegria e uma suculenta macarronada.
Lô Borges, autor da melodia, lembra-se com clareza do momento em que a música foi criada. “Eu fiz uma canção que entrou no FEC – Festival Estudantil da Canção, um Festival superimportante que acontecia em Belo Horizonte. E eu entrei com duas músicas: Equatorial, que foi a primeira música que eu fiz oficialmente com o Beto Guedes e que tem letra do Márcio Borges.
Na mesma época eu fiz a canção Clube da Esquina, com o Milton [Nascimento] e o Márcio Borges. Esse Festival da Canção foi uma coisa importante porque foi quando eu voltei a me apresentar em público, desde a época dos The Beevers.
Quando acabou o Festival, foi uma festa. Todos os artistas foram lá pra casa. Eu lembro que foi a Joyce, a Beth Carvalho… Estava todo mundo nesse Festival. Minha mãe e meu pai fizeram um jantar regado a cerveja. Eles gostavam de fazer festas para os músicos.”
Salomão e Maricota, matrizes do clã dos Borges, eram agregadores por excelência. Super-receptivos, não perdiam a oportunidade de se integrar ao grupo de amigos dos filhos.
“Eu estava tocando piano, como sempre. Eu era um cara que não largava o instrumento. Eu tocava desde a hora em que acordava até a hora em que ia dormir. Ou estava no piano ou com o violão. E nesse belo dia teve essa comemoração lá em casa, aquelas farras de músicos, aqueles encontros de amigos. Então, no meio daquela festa, eu estava tocando piano. A festa acontecendo e ninguém prestava a atenção no que eu estava tocando. Uma hora, o Marcinho e o Fernando Brant entraram na saleta em que eu estava tocando e eu falei: ‘Pessoal, eu estou fazendo uma música aqui. Querem escutar?
Eu acho que a música está pronta. Quem sabe vocês não fazem uma letra pra ela? No momento, a namorada do Fernando Brant [Leise] estava fazendo uma macarronada. Enquanto ela fazia a macarronada, os dois se trancaram no quarto e fizeram a letra da música. A letra foi feita super-rápido também. Eles estavam mais interessados em comer a macarronada”, resume Lô Borges.
Fernando Brant confirma e acrescenta: “O Bituca [Milton Nascimento] já estava morando no Rio e uma época ele veio pra cá [Belo Horizonte] e a gente se encontrou na casa dos Borges, lá em Santa Teresa. Aí o Lô chegou pra um monte de gente e disse: ‘Eu estou fazendo uma música aqui que vocês dois podiam fazer a letra. Então, enquanto a minha mulher foi fazer uma macarronada para a turma, nós sentamos, ouvimos a música e combinei com o Márcio: ‘Você faz uma parte e eu faço a outra. E depois a gente vê como ficou’.
Aí fizemos, combinamos que estava tudo certo. A macarronada saiu junto com a música. E aí já tocamos muito naquele dia. Essa foi uma música feita no meio de uma macarronada”.
Por ser escritor e contador de histórias, Márcio tempera a história com os detalhes que faltam. “Para Lennon e McCartney foi uma música que eu e o Fernando fizemos em cima de um tema do Lô, lá dentro de casa. Escrevemos essa letra lado a lado, trancafiados dentro do quarto de meu pai e minha mãe, que era o quarto mais perto da sala onde ficava o piano.”
Quando o festival terminou, todos os amigos foram para a casa dos Borges. Se fosse nos dias atuais, ficaria difícil conciliar as agendas de tantos monstros sagrados da música brasileira. É Márcio quem relaciona:
“Eduardo Conde, Beth Carvalho, Fernando Brant, Túlio Mourão, Bituca, Marilton… Nós todos lá naquela farra com a casa cheia de jovens. Lá era o epicentro, era o antro. Mamãe se lembra até hoje da Beth mocinha ainda. Era a nossa turma, tudo despojado nessa época. A mamãe e a Leise – namorada do Fernando e que depois virou mulher e mãe dos filhos dele – foram pra cozinha preparar uma supermacarronada. Porque é aquele negócio, quando tem muito jovem, nada melhor do que uma macarronada, que é fácil de fazer e enche o bucho de todo mundo.”
Cheio de empolgação, Márcio projeta a efervescência do ambiente e a alegria dessa turma de jovens privilegiados que testemunharam o nascimento de uma música histórica.
“E o Lô no piano, no meio daquela barulhada, aquela coisa infernal com aquele entra e sai de gente. O Lô não queria nem saber: pó pó pê pê ró ró rê ti tó ró ró ró ré ró ré [solfeja a primeira parte da melodia]. O Lô falou assim: ‘Marcinho e Fernando, vou aproveitar que eu estou com dois letristas aqui dentro de casa, que tal vocês fazerem uma letra pra esse tema aqui’? E nos mostrou no piano a melodia completa. Música simples, pequenininha. O Fernando disse: ‘Eu topo, Marcinho, mas a gente tem que terminar a letra antes da macarronada, porque eu estou mais a fim de comer do que de compor’ [risos]. Eu falei: ‘Idem’.
Aí eu e Fernando entramos pro quarto e como era bem pertinho, falamos: ‘Vai tocando aí, Lô’. E nos trancamos para amortecer um pouco a barulhada geral da casa, nos trancafiamos dentro do quarto da mamãe e do papai, sentamos na cama do casal e pra equacionar rapidamente eu disse. ‘Fernando, eu faço a primeira e você faz a segunda. Vai ter só duas partes essa música. Não tem negócio de volta, não’.”
Márcio deixa transparecer a facilidade do processo criativo dos envolvidos, ao comporem sob pressão, num ambiente ruidoso e na presença de outras pessoas. O intuito era de não perderem a festa.
Melodia pronta, letristas convocados, faltava combinar o tema que a letra iria abordar.
“– Qual é o tema que você pensou pra ela” – assuntou Márcio.
Lô se apressou em responder:
“– Na verdade, quando eu estava aqui compondo, estava pensando em John Lennon. Eu estou aqui fazendo essa música pra ele e eu acho que ele nunca na vida vai saber disso”.
“– Pois, é. Então você acabou de nos dar o tema da música. Nós vamos fazer essa música para Lennon e McCartney.”
A sugestão complementar de Márcio abraçou os dois principais compositores do grupo inglês.
“Então nós vamos falar disso, que a gente os adora, mas eles não sabem da gente. Esse é o tema. Vamos embora.”
Caneta e papel providenciados, os dois letristas se trancaram no quarto do casal e…
“Eu não queria perder a festa, nem Fernando [queria]”, afirma Márcio. “Em menos de meia hora, portanto, estávamos de volta à saleta do piano, bem a tempo de pegar a saída da macarronada de Leise. Lô cantou pela primeira vez os rabiscos que colocamos diante dele, na estante do piano. Na minha parte estava escrito: Porque vocês não sabem do lixo ocidental/não precisam mais temer/não precisam da timidez/todo dia é dia de viver/ Porque você não verá meu lado ocidental/não precisa medo não/não precisa da solidão/todo dia é dia de viver… E na parte de Fernando estava escrito: Eu sou da América do Sul/eu sei vocês não vão saber/mas agora sou cowboy/sou do ouro, eu sou vocês/sou do mundo, sou Minas Gerais.
Quando nós terminamos a letra, a macarronada estava indo pra mesa. Primeiro comemos bastante e depois mostramos a música pra galera. ‘Agora vamos pra cá pro piano.’ Aí juntou todo mundo em volta do piano. Eu e Fernando apresentamos a letra e junto com o Lô cantamos pra galera. Na segunda vez, a casa inteira já sabia a letra. Eu sou da América do Sul…
Ficamos o resto da noite cantando a música que virou o nosso hino, que nada mais é do que uma carta, um recado que a gente mandou para os nossos ídolos Lennon e McCartney. Esse ‘vocês’ aí são eles dois. E o Fernando ainda explica: Eu sou da América do Sul/eu sei, vocês não vão saber… Nós sabemos, nós os amamos, mas eles estão lá e não sabem da gente.”
Para Lennon e McCartney foi registrada, entre outros, por Milton Nascimento, no LP Milton – Milton Nascimento/Som Imaginário (Odeon, 1970); pelo Zimbo Trio, no LP Strings and Brass Plays The Hits (Phonogram, 1971); de novo por Milton Nascimento, no LP Paixão e Fé (EMI-Odeon, 1980); por Simone, no LP homônimo (EMI-Odeon, 1980); mais uma vez por Milton, no LP Milton Nascimento – Ao Vivo (Barclay/Ariola, 1983); por Jessé, no LP Sobre Todas As Coisas (RGE, 1984); por Elis Regina, no LP Luz das Estrelas (Som Livre, 1984); entrou também no repertório do CD Performance – Milton Nascimento (EMI-Odeon, 1990); por Flavio Venturini, no CD Beija-Flor (Velas, 1996); por Affonsinho, no CD Esquina de Minas – O Som do Barzinho (Dubas Música/Universal/Music, 2002).
“E a música se tornou um hino pra Minas Gerais, porque fala exatamente: Eu sou da América do Sul/sou do ouro, eu sou vocês/sou do mundo, sou Minas Gerais… É uma das músicas mais festejadas dos meus shows pelo meu público. Mas é uma música que eu fiz muito rápido, no meio de uma bagunça de gente falando alto, de gente passando perto de mim, não dando a menor atenção para o que eu estava tocando”, arremata Lô Borges, que na época da entrevista estava lançando um songbook (Neutra Editora, 2013), com dezenas de partituras e cifras de suas músicas, inclusive a de Para Lennon e McCartney.
Para Lennon e McCartney
(Lô Borges/Márcio Borges/Fernando Brant)
Porque vocês não sabem do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da timidez
Todo dia é dia de viver
Porque você não verá meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da solidão
Todo dia é dia de viver
Eu sou da América do Sul
Eu sei vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
Sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais
Livros da série “Então, foi Assim?” disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br