O dia em que o governo perdeu as ruas

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Por , publicado em Outras Palavras – 

Menos de seis meses após a posse, centenas de milhares protestam contra Bolsonaro. Atos sugerem caminho para enfrentar ultra-capitalismo e ignorância, mas expõem lacuna: falta saída alternativa

Saiu melhor que a encomenda. Os sinais de que a oposição aos cortes de verbas na Educação e Ciência era potente, visíveis há dias em centenas de assembleias, desaguaram caudalosos nas ruas. Mais de cem mil pessoas no Rio, Recife e em São Paulo. Dezenas de milhares em Salvador, Fortaleza, Belém, Brasília, Belo Horizonte, Florianópolis, São Luís e Porto Alegre. Centenas de cidades com protestos numerosos. Mais uma vez, ficou claro que a hipótese de “onda de apatia” é falsa. A tentativa de submeter o Brasil à tirania dupla do ultracapitalismo e do obscurantismo cultural e comportamental tem brechas e contradições. Elas vão se manifestar com mais frequência, daqui em diante. Quando houver sabedoria política – como nas últimas semanas – irão se traduzir em novas derrotas, e provocar divisões no bloco conservador.

No caso da Educação, a grande fissura foi cavada pelo próprio ministro. Ele chegou ao posto porque a ala lunática da coalizão governamental, responsável por dar ao presidente algum verniz antiestablishment o exigiu. Mas foi o caráter provocador de Weintraub que o levou a “politizar” os cortes de verbas; a transformar o que o neoliberalismo atribui a puro cálculo matemático em punição por “balbúrdia”; a despertar a indignação dos estudantes e encher as ruas. As entidades estudantis foram sagazes. UNE e UBES compreenderam que seriam tanto mais fortes quanto mais respeitassem a autonomia, iniciativa e criatividade das escolas e universidades. Nas manifestações, não houve dirigismo relevante – e, na maior parte dos casos, nem carros de som. Esta abertura é de enorme importância, porque até o momento parece faltar, por exemplo, às centrais sindicais, na luta contra o desmonte da Previdência pública.




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A massividade e a popularidade dos protestos provocaram um curioso efeito na velha mídia. Até ontem, este outro ator essencial para a vitória de Bolsonaro ignorava os preparativos para a grande mobilização. Certamente, preferiria que esta não ocorresse. Mas quando se tornou incontornável, as TVs e os jornais adotaram um estratagema ambíguo – e engenhoso, do ponto de vista de seus interesses. A manifestação era legítima porque Weintraub – e também o presidente – foram grosseiros e arrogantes, o que não condiz com as boas maneiras da política institucional… Mas os cortes seriam necessários – afinal, a economia está em declínio e o governo não tem como produzir riquezas, segundo a lógica hegemônica. Portanto, os estudantes e professores têm razão, desde que ousem criticar apenas o personagem caricato, nunca o sistema que o ampara.

Um comportamento ambíguo foi adotado, no mundo parlamentar, pela maioria do Congresso – cuja expressão maior é o Centrão. Uma vasta maioria de parlamentares do grupo impôs uma derrota humilhante ao governo ontem, quando o ministro Weintraub foi convocado, a contragosto, a explicar-se no Congresso. Mas hoje, quando ele compareceu ao Parlamento e fingiu alguma civilidade, mesclando o fundamentalismo com a defesa da ortodoxia econômica (além de se amparar na simploriedade de uma fala francamente pueril), a valentia do “Centrão” se desfez e o governo evitou que a fissura se transformasse em abismo inconsertável.

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A postura de Bolsonaro foi mais áspera. De Dallas, ele atacou, grosseiro, os manifestantes (“massa de manobra”, “idiotas úteis”, que “não sabem quanto é sete vezes oito, nem a fórmula da água”). Talvez seja sua empáfia ignorante: a crença de que, por ter vencido as eleições com postura ultrabeligerante, poderá mantê-la agora, quando se espera que governe). Talvez, seja um cálculo político esperto, visando a própria sobrevivência: que restará de Bolsonaro, se até sua imagem se reduzir à de um político tradicional, agora que sua presidência mostra-se tão desencantadora, tão incapaz de resolver os problemas do país?

Mas esta atitude beligerante terá um preço. À medida em que o governo naufraga, e em que o presidente insiste em fazer o papel de outsider, irá se converter em candidato a bode expiatório fácil de ser sacrificado – inclusive pelos neoliberais “clássicos”. É o que mostram, por exemplo, as manchetes cada vez mais críticas da Folha. Ou, muito mais importante, o espaço que todos os jornais dão às investigações do Ministério Público sobre a íntima relação entre a famiglia Bolsonaro e as milícias cariocas.

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Em meio a tantos êxitos, o tsunami da Educação voltou a evidenciar uma imensa lacuna política. Não há, na esquerda institucional brasileira, crítica ao núcleo do projeto neoliberal – apenas a suas bordas. Esta ausência ficou clara nas reações, no fundo tímidas, à fala de Weintraub no Congresso. Fez-se a contestação fácil a seu fundamentalismo, a seus ataques gratuitos. Debateu-se a amplitude de seus cortes. Seriam maiores ou menores que os de Dilma, na reviravolta pós-eleitoral de 2015?

Mas não houve oposição a uma lógica: a de que o Estado deve funcionar como se fosse uma empresa, buscando o lucro; ou ao menos examinando, com olhar de contador, as planilhas de receita e despesa do Fisco.

Estar em sintonia com o tsunami de hoje exigiria outra coragem. Dizer (como fazem Alejandra Ocasio nos EUA, Jeremy Corbyn na Grã-Bretanha ou mesmo Pedro Sánchez, na Espanha) que o Estado precisa – e tem elementos para – perseguir outras éticas. Bem-estar para todos. Redução das desigualdades. Proteção do meio ambiente. Geração de ocupações. Ou ainda mais concretamente, nas condições brasileiras: esboço de um novo programa. Garantia de que as periferias deixarão de ser as senzalas pós-modernas. Cidades sem cercas – e livres da ditadura do automóvel e do cimento. Agricultura sem ruralismo e sem venenos. Enfrentamento da crise laboral, com Renda da Cidadania e serviços públicos de excelência. Oferta, pelo Estado, de um posto de trabalho — com direitos — a quem queira participar do novo projeto de país.

Parece muito difícil, porque a esquerda institucional foi poder, por treze anos, e não rompeu com as velhas lógicas. Mas será cada vez mais necessário se quisermos, ao invés de nos voltar para o passado, construir as condições para superar o neoliberalismo agora.

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