O dia em que o palhaço chorou

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Por Nirton Venancio, cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema – 

O Bem Blogado reproduz aqui um belo texto de Nirton Venancio, sobre a falibilidade humana, da fragilidade de um que foi considerado um gênio da comédia no cinema.

No final dos anos 60, o ator e diretor Jerry Lewis entrou num período depressivo vendo a fraca repercussão de seus filmes. Desde meados dos anos 50 que ele manifestava sinais de  – descontentamento -, embora evitasse falar, com o fim de sua parceria com o ator e cantor Dean Martin em dezenas de filmes. Este também não comentava o que aconteceu,  que motivou o desintegração da dupla que fazia tanto sucesso.
Até personagens em gibis foram criados com os tipos que encantavam na tela, sempre Dean como o bom moço, galã, e Lewis o palhaço ingênuo. Ficaram muito tempo sem se falarem. A reconciliação se deu somente em 1987, quando o filho de Martin faleceu precocemente, aos 32 anos, em um acidente aéreo. Lewis compareceu ao velório e enterro. Os dois se abraçaram demoradamente. A morte sempre lembrando que a vida é um sopro.
Naquela década de 60 Jerry Lewis optou por ausentar-se dos sets. Foi dar aulas de direção de cinema em uma universidade em Los Angeles. Um de seus alunos era um jovem de 22 anos chamado Steven Allan Spielberg, que acreditava na amizade de seres sem idade específica de lugares distantes com crianças de pequenas cidades da Califórnia, comendo doces de manteiga de amendoim enquanto os adultos se interessavam pela tecnologia das espaçonaves.
Ao término do curso, em 1968, apresentou seu primeiro filme, o curta-metragem “Amblin”. O professor Lewis ficou aloprado com o que viu, a maestria narrativa do pubilo ao contar a história de um casal de jovens que se encontra no mais árido e hostil deserto da América, o Monjave. Mais fascinado ficou com a preciosidade da produção do pequeno filme, sob a coordenação de outro aluno, um garotão esperto de 24 anos, com visão logística de guerra nas estrelas, George Walton Lucas Jr.
Inspirado na garra e tenacidade daqueles garotos, quando decidiu voltar aos sets, Jerry Lewis fixou-se na ideia de realizar algo diferente, uma comédia dramática. Nada de caretas e pastelão. Caiu-lhe nas mãos um argumento, “The day the clown cried”, de dois roteiristas desconhecidos. O ator leu, topou dirigir e interpretar o papel principal. Rodado na França em 1972, o filme (foto) nunca foi exibido, envolvido em polêmica logo após as filmagens, e guardado a sete chaves pelo próprio Lewis.
A história é no mínimo extremamente delicada: durante a Alemanha nazista um palhaço bêbado num bar tira onda com o Führer Adolf Hitler, imitando-o com deboche. Os brutamontes da Gestapo sabem e o prendem, mandando-o para um campo de concentração em Auschwitz.
Vendo o palhaço brincando e divertindo as crianças judias, fazendo-as esquecer onde estavam e o que o destino de fatal ocultava para a qualquer hora, os soldados o obrigam a entreter os pequenos nos momentos em que se enfileiram a caminho das câmaras de gás, prometendo-lhe liberdade pela cruel tarefa. Minutos depois ao ver a fumaça branca das chaminés levando aos céus o silêncio das crianças, que há pouco riam de suas brincadeiras, o palhaço desaba em remorso, choro e não se perdoa.
Jerry Lewis também não se perdoou pelo filme que dirigiu e interpretou. Despencou igualmente em compunção e lágrimas. Personagem e ator num só corpo e alma em conflito, transgredidos em suas condições de gênero humano.
A volta ao cinema não foi tão redentora como supôs ao se inspirar no talento e obstinação daqueles seus dois alunos, agora um revelando-se grande diretor com o longa de estreia, “Encurralado”, 1971, e o outro dirigindo um curioso filme de ficção científica, “THX 1138”, sobre uma sociedade distópica que mistura “1984”, de George Orwell, com “Metrópolis”, de de Fritz Lang, também de 1971.
Na biografia “Dean & Me – A love story”, que lançou em 2005, Jerry Lewis confessa seu arrependimento com o filme de humor infeliz. “É mau, mau, mau. Podia ter sido poderoso, mas escorreguei”, deplora-se em um trecho.
Desde então, Jerry Lewis afastou-se definitivamente do cinema. Além do abalo de perder um filho por overdose, em 2007, sua saúde ficou extremamente comprometida nos últimos anos, e aos poucos reabilitava-se de quedas, remédios viciantes para diminuírem as dores, pneumonia, artérias do coração bloqueadas, cateterismo, meningite viral, câncer na próstata, diabetes, peso excessivo por conta de um tratamento de fibrose pulmonar e, por último, a insanidade de declarar apoio a Donald Trump na eleição de 2016.
Na manhã de 20 de agosto de 2017 falece aos 91 anos, já em estado terminal com o problema cardíaco.
A única cópia do filme realizado em 1972 foi entregue por Jerry Lewis à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, e secretamente guardada, com o acordo de ser exibida somente em 2025, na véspera de um século do seu nascimento.

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