Por Breiller Pires, publicado em El País –
Há 40 anos, na Copa da Argentina, o atacante que comemorava gols com punho cerrado desafiou o comando do regime militar
Era o gol de empate do Brasil. Foram poucos segundos para tomar uma decisão importante: erguer o braço direito, com o punho cerrado, ou “deixar pra lá”? Aos 21 anos, Reinaldo Lima, mineiro de Ponte Nova, já era o craque do Atlético-MG. Chegou à Copa do Mundo de 1978 como camisa 9 da seleção brasileira, que estreou no torneio em 3 de junho daquele ano, contra a Suécia, em Mar del Plata. O time escandinavo abriu o placar. Mas, aos 45 minutos do primeiro tempo, Toninho Cerezo cruzou da direita, Reinaldo se antecipou ao zagueiro Roy Andersson e empurrou para as redes. O ato que se seguiu ao gol foi encarado como uma afronta aos governos militares espalhados pela América do Sul. Uma decisão por impulso. Mas também por rebeldia.
Inspirado no movimento dos Panteras Negras e na dupla John Carlos e Tommie Smith, os atletas negros americanos que protestaram contra o racismo na Olimpíada de 1968, Reinado comemorava seus gols com o punho em riste. “No meu caso, era um gesto socialista, em protesto pelo fim da ditadura”, conta. Ele já havia acirrado sua postura combativa ao regime militar no Brasil três meses antes da Copa, quando alegou ter sido impedido de disputar a final do Campeonato Brasileiro diante do São Paulo por causa de uma punição manobrada entre cartolas e o Governo. Naquela época, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual CBF) era comandada por militares, sob a presidência do almirante Heleno Nunes. Reinaldo foi suspenso após julgamento por uma expulsão que acontecera no mês anterior. O centroavante, que não era visto com bons olhos por Nunes e seus subordinados, se convenceu de que o regime estava por trás da suspensão e passou a ser ainda mais crítico à ditadura.
Por ter seu inconfundível talento reivindicado na Copa pelo clamor popular, acabou convocado pelo treinador Cláudio Coutinho, que era capitão do Exército. Antes do embarque para a Argentina, jogadores e comissão técnica da seleção foram recebidos pelo presidente Ernesto Geisel no Palácio Piratini, em Porto Alegre. Em discurso oficial, o general deixou implícita uma mensagem opressiva: “Ponham de lado os sentimentos pessoais e façam do time um conjunto que realmente possa trazer a vitória”. Ao cumprimentar Reinaldo, relata o ex-jogador, Geisel teria transmitido a ordem de forma mais clara: “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. Mais tarde, na concentração, André Richer, chefe da delegação brasileira, comunicou a Reinaldo que tanto a CBD quanto o regime militar consideravam o gesto ao celebrar os gols “revolucionário demais”. A recomendação era para que não repetisse aquele tipo de comemoração nos campos argentinos nem tecesse comentários sobre política em entrevistas.
A Argentina que recebia pela primeira vez um Mundial sofria com as violentas consequências do golpe militar liderado em 1976 pelo general Jorge Videla, que, décadas depois, seria condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidadecometidos durante seu Governo. Nesse contexto, a Copa tinha um enorme peso político para os argentinos. Reinaldo sabia que seu gesto repercutiria muito além do campo de futebol. Hesitou ao empatar o jogo contra os suecos. Porém, a cena do punho erguido, que durou pouco mais de dois segundos, ficou marcada como o momento mais emblemático de sua trajetória na seleção brasileira. “Quando o presidente [Ernesto Geisel] falou aquilo, eu fiquei meio assim, pensativo. Mas, na hora que fiz o gol, não teve jeito. Levantei o braço, não resisti… E aí já era.”
Depois do jogo, no hotel da seleção, Reinaldo lembra ter recebido um envelope anônimo da Venezuela. Era, segundo ele, um documento com informações em espanhol sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek em um acidente de carro, dois anos antes. Se deu conta, então, de que poderia estar no radar da Operação Condor, aliança entre ditaduras sul-americanas para perseguir opositores dos regimes militares. “Fiquei aterrorizado, mas não contei a ninguém a respeito do documento”, diz o ídolo atleticano, que foi barrado do time titular por Coutinho depois do empate com a Espanha. Tinha problemas físicos desde a preparação para a Copa. Treinava de calças compridas para esconder o inchaço no joelho. Mas acredita ter ido para a reserva por determinação do almirante Heleno Nunes, que, após o duelo contra os espanhóis, cobrou publicamente da comissão técnica mexidas na equipe.
O Brasil avançou até a segunda fase do Mundial. Para se classificar à final, dependia que o Peru não fosse goleado pela Argentina. Os donos da casa venceram por 6 a 0, em uma partida cercada pela suspeita de suborno aos peruanos. Minutos antes do apito inicial, Videla adentrou o vestiário dos visitantes, deixando encabulados os jogadores que vestiam o uniforme. Nenhum deles jamais admitiu ter recebido dinheiro para entregar o jogo, mas alguns justificariam, nas décadas seguintes, que o encontro com o general teria desestabilizado a equipe. “Aquilo foi um desrespeito ao futebol”, afirma Zico, que, assim como Reinaldo, também perdeu a posição no time brasileiro durante a Copa. “Tanto que o povo do Peru recebeu sua seleção arremessando moedas.”
“O corpo fascista do país começou a me minar. Não só moralmente, mas com assédio de todo o tipo. Falavam que eu era cachaceiro, maconheiro, viado. Fui massacrado sozinho”
No fim das contas, Videla e todo o governo militar argentino festejaram o primeiro título mundial, conquistado em cima da Holanda. Já Reinaldo tão cedo não encontraria motivos para comemorar novamente. Mal retornou ao Brasil e pegou um avião em direção aos Estados Unidos, onde voltou a operar o joelho. Aproveitou o período de recuperação para entregar o documento que havia recebido na Argentina ao cantor e compositor Gonzaguinha, outro desafeto da ditadura, que morreu em 1991 sem nunca ter revelado ao amigo jogador o destino do material contido no envelope. Geisel, o general que apertou sua mão antes da Copa e o aconselhara a “deixar pra lá” a política, seguiria no poder até 1979. “Medo eu não tinha, porque contava com respaldo popular. Não iam me sequestrar ou matar, como fizeram com vários outros brasileiros. Mas fui queimado em fogueira pública e continuo queimando até hoje.”
Reinaldo atribui a “forças ocultas do regime” a disseminação de boatos em torno de sua orientação sexual por causa da amizade com o radialista gay, Tutti Maravilha. Para ele, a ditadura não perdoou o atrevimento de seu gesto na Copa e a postura de enfrentamento aos militares. “O corpo fascista do país começou a me minar. Não só moralmente, mas com assédio de todo o tipo. Falavam que eu era cachaceiro, maconheiro, viado. Era uma campanha difamatória, linchamento moral. Eu não tinha partido, sindicato, nada. Fui massacrado sozinho.” Colheu dissabores devido à fama de “problemático”, como a não convocação para a Copa de 1982. Telê Santana, considerado um técnico disciplinador, pregava abertamente que não queria em seu time “sujeito homossexual”. Mas relacionou o veto a Reinaldo apenas à suposta má condição física do jogador. “Houve influência política. Eu estava bem fisicamente. A comissão técnica não resistiu à pressão, aos argumentos de pessoas que não me queriam na seleção”, diz o ex-atacante. “O Telê era implicante com o estilo de vida das pessoas. E o meu estilo não o agradava.”
Acometido por seguidas lesões, Reinaldo parou de jogar cedo, aos 29 anos. Depois da aposentadoria, conviveu com o vício em drogas, lutou contra a dependência química, se aventurou pela política e, atualmente, trabalha como observador nas categorias de base do Atlético. Em vez de arrependimento, ele revela orgulho de ter escolhido lutar quando poderia, simplesmente, ter deixado pra lá. “O futebol sempre foi um meio machista e conservador. Não aceitam que um jogador tenha posições políticas, que se proponha a pensar. Fui perseguido por fazer oposição, mas, como figura pública, era preciso mostrar resistência ao regime militar para acelerar o processo democrático. O autoritarismo emburrece a sociedade. Quem pede a volta da ditadura militar no Brasil não sentiu na pele o que eu sofri.”