O dia em que Rory Gallagher cantou “Satisfaction” para Jerry Lee Lewis

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Foi em 1973. Mas a gravação ficou perdida por quase meio século

Por WALTERSON SARDENBERG Sº, compatilhado de seu BLog




No início de 1973, o rock “(I Can’t Get No) Satisfaction” já somava quase oito anos de estrada — e de glórias. É o maior sucesso dos Rolling Stones. A gravação original, lançada em compacto-simples no dia 6 de junho de 1965 nos Estados Unidos — só mais tarde sairia no Reino Unido —, chegou, pouco mais de um mês depois, ao primeiríssimo lugar na parada de sucessos da revista Billboard. Superava assim, como um furacão, “I Can’t Help Myself”, com os Four Tops, e “Mr. Tambourine Man”, com os Byrds. Nada mau para um riff que o guitarrista Keith Richards compôs dormindo, em seu apartamento londrino de Carlton Hill.

A história virou lenda. Keith acordou sobressaltado no meio da noite, e, ainda com remela nos olhos, sentou-se na cama com o violão em punho. Sonado, registrou o esboço de “Satisfaction” em um diminuto gravador Philips. Não tinha a menor ideia de ter criado — com péssimo hálito, por sinal — aquele que muitos consideram o maior riff do rock. De manhã, depois de acordar, ainda demorou a se dar conta da gravação.

Os Stones registraram, de início, “Satisfaction” em um estúdio lendário: o Chess, de Chicago, de música negra — em especial, blues elétrico. Não ficaram satisfeitos. Dias depois, tentaram de novo nos estúdios da RCA, em Los Angeles. Ainda não saiu como queriam. Foi esta, de qualquer maneira, a versão final, colocada na praça, à revelia da banda.

Detalhe: no mesmo ano de 1965, Paul McCartney também compôs dormindo um hit radiofônico. Era “Yesterday”.

Passados quase oito anos da gravação dos Stones, mais que um sucesso, “Satisfaction” havia se transformado em instituição. Por isso, todo mundo ficou pasmo (estupefato é adjetivo ainda mais adequado) em janeiro de 1973, no estúdio Advision, da Gosfield Street, no centro de Londres, quando o cantor-pianista Jerry Lee Lewis revelou, sem nenhum constrangimento, jamais ter ouvido a canção. Ele mesmo, The Killer em pessoa, o bagunceiro-mor, o astro sexy de ondulado topete na testa. Pois é, um dos pais do rock’ n’ roll.

Jura? Mas como assim? Nem um pedacinho no rádio? Onde Jerry esteve nos últimos oito anos? Em algum abrigo antiaéreo?

  1. TO MUCH CANJEBRINA

OK, naquele comecinho de 1973, Jerry Lee Lewis tinha 37 anos e alguns bons motivos para afastar-se do rock’ n’ roll (rechaçar é verbo ainda melhor) e abraçar a caretice da música caipira, o country & western. Assim fizera nos últimos tempos, mais por resignação e instinto de sobrevivência do que por vontade própria, ressalve-se.

Ainda estava ressentido, eis o problema. A história é famosa. No auge do sucesso, aos 23 anos, em 1958, com o louro topete nas alturas, caíra em desgraça ali mesmo, em Londres, quando a imprensa sensacionalista descobriu, no aeroporto de Heathrow, seu casamento com Myra, uma menina de 13 anos — sua prima em segundo grau.

Jerry & Myra em Londres

Foi um escândalo. Depois desse episódio, a carreira de Jerry degringolou ao mesmo tempo em que subia, em escalas geométrica e de mililitros, seu consumo de birita — o que pouco ajudava em seu temperamento mercurial e fanfarrão. O abuso de canjebrina tinha uma razoável justificativa: o cachê de seus shows desabara dos US$ 10 mil para apertados US$ 200.

É bem verdade que seis anos depois, em 1964, Jerry ainda teria forças para criar um disco antológico do mais endiabrado rock’ n’ roll.

Eis aí um sujeito duro na queda.

  • THE RETURN OF ROCK’N’ROLL

O tal disco foi gravado ao vivo, em Hamburgo, na Alemanha, na mesma casa noturna furreca em que os Beatles, ainda meninotes e quase anônimos, cumpriram temporadas movidas a testosterona e anfetaminas.

Em Live at the Star Club, The Killer subiu ao palquinho para demolir as teclas do piano e encarar de frente seus hits e rocks afins, acompanhado por um trio britânico ainda também meninote e também quase anônimo, os Nashville Teens — que, cá entre nós, só conheciam a cidade americana de Nashville, no Tennessee, de cartão-postal.

Adoravelmente selvagem, o disco está entre os 20 melhores da lista dos gravados ao vivo da revista Mojo. Na cotação da Rolling Stone, desponta no 16º posto. A valorização vem subindo. Em 2020, o jornal The Independent alçou o álbum à quarta posição na categoria. No mesmo ano, outro diário, o The Telegrafh, o soergueu ao segundo lugar. Pelo andar do Cadillac, logo encabeçará as listas.

O retorno de Jerry ao mais bravio rock’ n’ roll, seria celebrado, ainda em 1965, com um outro LP exatamente com este nome, The Return of Rock’n’roll. Esperançoso e teimoso, ele insistiu mais um pouco. Mas não tinha jeito: seu público encolhera. Não só em virtude de seu repudiado casamento com uma garotinha, mas, em especial, pela chamada “invasão inglesa”, capitaneada pelos Beatles e Rolling Stones.

 A solução foi fincar os pés, já não tão inquietos, em suas origens redneck —Jerry nasceu nos cafundós da Luisiana —, gravando uma série de LPs de música caipira sulista, sob o título geral de Sings the Country Music Hall of Fame.

Haja botas de cowboy e carne de porco regada ao molho barbecue.

Era o que lhe sobrara. Paciência.

  • BACK TO LONDON TOWN

Foi assim, saudado com pedal steel, banjo e violinos, até a virada para os anos 70, quando os novos roqueiros passaram a pagar tributo, em público, ao blues genuínos e aos criadores do bom e velho rock’ n’ roll. Sobretudo na Inglaterra. Nas muitas entrevistas, esses branquelos britânicos frisaram a influência dos veteranos americanos e a importância deles para o seu êxito. E o faziam por reverente gratidão — ou, digamos, por um não assumido complexo de culpa.

Alguns dos nomes cultuados pelos astros em ascensão eram os de Muddy Waters, Howlin’Wolf, Bo Didley, Chuck Berry — e, claro, Jerry Lee Lewis, o encrenqueiro de esquina, o brigão, o único branco dessa plêiade, nascido em 1935, o mesmo ano do rival, também branquelo, Elvis Presley.

Isso não só reergueu carreiras em declínio como também suscitou inesperados convites. Por exemplo: a gravadora Chess, de Chicago — aquela mesma onde os Rolling Stones registraram a primeira versão de “Satisfaction” —, bolou uma estratégia bem sacada. Levou a Londres alguns desses grandes blueseiros ou maduros roqueiros americanos e, engenhosa, cercou-os de jovens músicos britânicos, seus confessos admiradores.

Era uma maneira certeira, e menos espalhafatosa, de fazê-los vender mais discos entre a garotada imberbe do que aquela cometida em 1968 no álbum Eletric Mud, de Muddy Waters. Na ocasião, a Chess acachapou o veterano Águas Lamacentas, indefeso, debaixo de um ataque homicida de guitarras distorcidas.

Surgia assim, menos estrepitosa, a série The London Sessions, com quatro álbuns lançados entre 1971 e 1973, tendo à frente o próprio Muddy Waters, além de Howlin’ Wolf (brindado com o melhor disco do pacote), Bo Didley e Chuck Berry.

Se não explodiram nas paradas, em parte por culpa da acanhada distribuição da Chess, os LPs, ainda assim, venderam bem — e até saíram no Brasil, pela modesta RGE/Fermata. Todos com lindas capas desenhadas por Sandy Hoffman.

Daí porque Jerry Lee Lewis, embora reticente, acabou embarcando na ideia, mesmo um tanto cabreiro de ter de desembarcar no aeroporto de Heathrow — sempre uma lembrança ingrata — para gravar com músicos britânicos cabeludos.

A diferença: a gravadora era outra, a Mercury. Em virtude disso, ganhou o nome econômico de The Session, em vez de The London Sessions. Também saiu no Brasil, pela Polygram, sem estardalhaço.

O disco duplo foi o derradeiro sucesso fonográfico de Jerry Lee Lewis, chegando ao 37º posto nas paradas americanas.

  • ENFIM, RORY GALLAGHER

Se o álbum não sairia pela Chess, a estratégia era a mesma. Em um e outro caso, mudavam apenas os músicos britânicos. Vejamos.

Howlin’ Wolf, pioneiro na série, deu sorte. Teve à disposição um time enxuto e exemplar, metade Blind Faith, outra metade Rolling Stones: Eric Clapton, Steve Winwood, Bill Wyman e Charlie Watts. Não havia como dar errado. O LP ficou um primor.

Chuck Berry, por seu turno, ganhou um time com escalação menos luminosa. Os mais conhecidos eram dois coadjuvantes do grupo Faces: o baterista Kenney Jones e o pianista Ian McLagan. Disso resultou uma marcação mais “dura”, sem graça. Kenney Jones não tinha o suingue dos antigos bateristas da Chess, como Frederick Below Jr e Maurice White — sim, o futuro líder do grupo Earth, Wind & Fire.

No caso de Muddy Waters, não havia do que se queixar. Lá estavam Steve Winwood e Rick Grech (que participaram juntos do Blind Faith e do Traffic), além do jazzístico batera Mitch Mitchell, do Experience, de Jimi Hendrix.

Na guitarra, em boa parte das faixas do LP refulgia Rory Gallagher, o garotão irlandês beberrão e boa-praça, que havia duas temporadas ingressara em carreira solo, depois de comandar o power trio Taste.

Aos 24 anos, era também um sujeito simples, colaborativo, apaixonado por blues, exímio no slide guitar e já havia gravado com Albert King, outro blueseiro negro americano do primeiro time.

“Albert King não foi nada simpático”, frustrou-se Rory. A parceria com Muddy Waters se revelou muito mais agradável. “Muddy tinha uma aura de amabilidade”, resumiu.

Talvez por essa segunda impressão, Rory Gallagher topou participar das sessões com Jerry Lee Lewis, mesmo sabendo da fama de encrenqueiro de The Killer. Em todo caso, levou ao estúdio seu irmão, empresário, braço direito e superego Dónal Gallagher. Os dois eram fãs de Jerry desde fedelhos.

“Aquele convite foi uma mega honra para Rory”, recordou-se Dónal, em entrevista a RTÉ Entertainment. “Nós dois amávamos Jerry Lee Lewis. Em especial, o disco ao vivo no Star Club.”

  • THE KILLER ROCKS ON

Charlie Fach, o chefão da Mercury, se gabava de ser o autor da ideia de The Session. Contava isso para todo mundo.

“Sempre que eu ia a Londres, os músicos britânicos me diziam que adorariam tocar com Jerry Lee Lewis, tão logo ficavam sabendo que eu era da gravadora dele”, relembrou.

O sucesso da série da Chess Records, que precedeu o álbum, o desmente, claro.

De qualquer maneira, coube a Charlie Fach a escolha do produtor do disco, Steve Rowland, que tinha na folha de serviços trabalhos para os Pretty Things e os Mindbeders.

“Era um americano que vivia na Inglaterra, e isso facilitava as coisas”, disse Charlie.

O versátil californiano Steve Rowland permanece vivo em 2025, aos 92 anos. Além de produtor de discos, é cantor, ator e, não bastasse, sobrinho de Louis B. Mayer, capo da Metro Goldwyn-Mayer.

Ficou reservada a ele a escolha os músicos — com pitacos de Charlie Fach, evidentemente.

Nada menos que cinco dos melhores guitarristas britânicos participaram das sessões de Jerry Lee Lewis, no Advision Studios, o primeiro de Londres a ter uma mesa de 24 canais. Além de Rory Gallagher, mandaram ver nas seis cordas, em sessões alternadas ou não, Jimmy Page (do Led Zeppelin), Peter Frampton (Herd e Humble Pie), Alvin Lee (Ten Years After), Albert Lee (Heads Hands & Feet, e Albert Lee Band).

A eles se juntaram, entre outros, o cantor americano Delaney Bramlett (Delaney, Bonnie & Friends), o tecladista e cantor Gary Wright (Spooky Tooth e carreira solo), o organista Matthew Fisher (do Procol Harum) e o baixista alemão Klaus Voorman, velho amigo dos Beatles — e autor do desenho da capa do LP Revolver, dos Fab Four. Um timaço.

Quando Jerry Lee Lewis entrou no estúdio da Advision, no dia 8 de janeiro de 1973, todavia, havia apenas dois músicos, além do produtor Rowland, para recepcioná-lo: Delaney Bramlett e Gary Wright.

The Killer não ouvira falar de nenhum deles, como, de resto, não conhecia nenhum dos demais que foram se agregando ao time. Aliás, sequer aprenderia o nome de qualquer um deles nas semanas seguintes. Não fez qualquer esforço nesse sentido. Era ele o centro das atenções, ora essa. Preferia chamá-los, sem distinção, de “Filho” ou “Garoto”, a despeito da idade e fama de cada um.

Para sorte dos ingleses, Jerry não estava de mau humor ao entrar no estúdio. Já em Londres, dormira uma noite regeneradora no hotel. Era providencial. Afinal, desembarcara em Heathrow, no domingo, em avançado estado etílico, uma vez que aproveitara as benesses das bebidas grátis da Primeira Classe do avião.

Vinha acompanhado por seu empresário Cecil Harrelson; seu gerente editorial, Eddie Kilroy e o ajudante dele, Judd Philips. Trazia também três músicos de apoio, incluindo seu filho, o baterista Jerry Lee Jr., de 19 anos.

De quebra, descia em Londres com a novíssima namorada, Charlotte Bampus.

  • “FILHO, VOCÊ NÃO SABE TOCAR GUITARRA”

Aflito por ter à disposição um comitê de recepção tão diminuto para acolher Jerry Lee Lewis, o extrovertido Steve Rowland logo telefonou ao guitarrista Albert Lee, que se prontificou a ir correndo para o estúdio. Não sem antes perguntar ao produtor se poderia levar a tiracolo o cantor e compositor Tony Colton, amigo e companheiro da banda Heads Hands & Feet. O parceiro era um ferrenho admirador de Jerry e da música country.

Sem problemas. E assim o time foi se encaixando, ainda que os “Filhos” e “Garotos” entrassem no Advision desconfiados. Todos, a bem da verdade, com receio das reações de The Killer — à exceção, como se verá adiante, de Tony Colton. Era mais prudente.

“Havia algo de Donald Trump em Jerry”, diz Dónal Gallagher. “Você nunca sabia como ele reagiria. Era imprevisível.”

Apesar do pé atrás, Rory e Jerry deram-se bem no estúdio. Sem grilos.

“Jerry gostou do jeito simples, de garoto interiorano de Rory”, lembra-se Dónal. “Além disso, Rory havia participado das bandas de baile, ainda muito jovem, na Irlanda, e podia tocar qualquer repertório. Jerry admirou essa versatilidade.”

Tímido, Rory se portou como um acompanhante. Em nenhum momento quis mostrar seu exímio domínio da guitarra. Não era um exibicionista. Ao contrário do jovem Peter Frampton, 22 anos, que, em um momento, ousou solar com muito peso, agressividade e notas rápidas. Jerry não gostou nadinha da exibição técnica.

Para horror de Peter Frampton, despachou, desdenhoso:

“Filho, você não sabe tocar guitarra”.

Apesar de tudo, Rory considerou Jerry mais acessível do que Albert King, ainda que sempre um tanto paranoico. Aos poucos, foi ficando mais à vontade, a ponto de apoiar Steve Rowland na missão de tentar convencer The Killer a tocar algum material novo. Nesse assunto, porém, Jerry não estava para muita conversa — nunca estava para muita conversa.

Nostálgico, The Killer vinha aproveitando as sessões para entoar canções que aprendera ainda guri, casos de “I Can’t Give You Anything But Love” (lançada em 1928) e “There’s a Goldime in the Sky” (de 1937). Tinha reservado um lugar especial para “Drinkin’Wine Spo-Dee-O-Dee”. Mais lembranças: havia cantado este número em 1949 numa concessionária Ford em Ferriday, na Luisiana, em sua primeira apresentação pública, aos 14 anos.

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