O diabo é mais feio do que se pinta quando o assunto é educação

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Toda legislação que esbulha direitos dos cidadãos ou impõe medidas retrógradas nesse país é sempre atenuada por concessões ou condicionantes que lhe conferem um sentido mais palatável despertando em seus destinatários a impressão de que “o diabo não é tão feio como se pinta.” Nos limites desse texto, faremos algumas considerações sobre ensino religioso e ensino domiciliar como exemplos de estratégias governamentais que visam à disseminação de modos de pensar e agir em consonância com projetos autoritários que desejam se perpetuar no poder.

Por Sonia Castro Lopes, compartilhado de Construir Resistência




Permitam-me os leitores que eu recue ao passado de onde pinçarei um clássico da história da educação brasileira. Trata-se do decreto que inseriu no currículo das escolas públicas o ensino religioso no remoto ano de 1931, primórdios do governo Vargas (Decreto n.19.941/1931). Tal medida resultou de um acordo entre a Santa Sé e um governo que carecia de legitimidade, especialmente entre as camadas populares, devido à forma autoritária como se estabeleceu. Os intermediários do projeto foram o ministro da educação Francisco Campos (que depois se tornaria célebre pela elaboração da Constituição do Estado Novo, a famosa “carta polaca”) e o Cardeal D. Sebastião Leme, que tentava com essa medida recuperar o prestígio político da Igreja Católica golpeada pela Constituição Federal de 1891 que estabelecia o Estado Laico no Brasil. Além deles, havia a presença de intelectuais católicos como Alceu Amoroso Lima e instituições como o Centro Dom Vital e a revista católica A Ordem que divulgavam a argumentação do Cardeal quando este afirmou diante de uma multidão que “ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhece o Estado.”

Ora, se o Estado é laico espera-se que as escolas públicas, mantidas pelo governo, também o sejam. Entretanto, os interesses e a força política da Igreja Católica – absolutamente hegemônica na época – prevaleceram, opondo-se ao discurso dos educadores ligados ao Movimento da Escola Nova que preconizavam uma educação universal, obrigatória, gratuita e laica.  A Constituição Federal de 1934 ratificou a medida com base no princípio liberal segundo o qual “a educação é dever do Estado e da Família”. Aí estava a brecha para se inserir o ensino religioso que era facultativo e ministrado mediante autorização dos pais ou responsáveis. Consultados, 86% dos responsáveis por crianças na capital do país declararam apoiar a medida sob a justificativa de que religião nunca faz mal, uma vez que contribuía para “formar o caráter dos futuros cidadãos dentro de princípios morais que iriam fortalecer seus espíritos diante das agruras da vida.”

As condições em que foi ministrada a disciplina, entretanto, acabariam por torná-la obrigatória. Inserida no horário normal de aulas, que pai ou mãe prefere ver seus filhos desocupados, sem qualquer atividade pedagógica no interior de uma escola e, na maioria das vezes, sem segurança alguma? O ensino religioso nunca saiu do currículo escolar, embora nem sempre tenha aparecido sob esse título. Na época da ditadura civil-militar foi substituído formalmente pela Educação Moral e Cívica, mas os conteúdos religiosos se faziam presentes ainda que com outras roupagens. Hoje, apesar de se evocar o ecumenismo e antiproselitismo nas aulas de religião sabemos quais são os interesses e projetos que estão por trás desse aparato legal. Isso sem falar nas isenções e privilégios que alcançam as escolas religiosas, bem como as igrejas que lhes servem de esteio.

No contexto do atual governo a educação tem sido o campo ideal para mobilizar a população a aderir a princípios retrógrados em nome de Deus, da pátria e da família. Encontra-se em marcha uma verdadeira guerra cultural por meio da qual se pretende impor ao país uma agenda ultraconservadora. Fomos surpreendidos há pouco com a votação sobre a regulamentação do ensino domiciliar na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).

A justificativa para regulamentar tal modalidade de ensino em pleno século 21 é evitar que as crianças “sejam contaminadas pela ideologia nas salas de aula.” Esse retrocesso obteve apoio dos parlamentares ligados ao governo que inseriram algumas condições para mascarar o absurdo da lei e atrair a aprovação de cidadãos que não percebem a armadilha em que estão caindo. Se os parlamentares radicais pleiteiam que pais ou instrutores que possuam apenas o ensino médio podem educar seus filhos em casa, os autores dos ‘destaques’ fazem pequenas concessões ao público ao exigir que os ‘professores’ tenham cursos superiores ou tecnológicos. Para ludibriar os incautos pregam a necessidade de os estudantes terem sua aprendizagem avaliada por escolas da rede pública com a condição de retornarem à educação escolarizada caso sejam reprovados por duas vezes consecutivas. “Ah, bom, dizem os ingênuos, estão vendo? A oposição fala demais…”

Acontece que, como se diz por ai, o buraco é mais embaixo. Não é apenas o acúmulo de informações que está em jogo (a famosa educação bancária criticada por Paulo Freire). É importante lembrar que a escola socializa, prepara para o mundo, é um local de acolhimento, de compartilhar experiências, sentimentos e afetos, um lugar onde se aprende a respeitar as diferenças e eliminar os preconceitos. Além disso, bastaria ter um curso superior para ministrar as aulas em consonância com as bases nacionais curriculares? Onde está a formação pedagógica dos ‘professores’ que irão educar esses alunos? Felizmente, devido ao impacto causado pela oposição, o assunto foi retirado de pauta e aguarda maiores debates antes de voltar a ser discutido na CCJ da Câmara.

Este é apenas um dos exemplos das medidas antidemocráticas em educação que receberam o aval dos ‘cidadãos de bem’ apoiadores do atual governo em nome da ‘liberdade de escolha’. Gente que não se abala diante da notícia gravíssima de que o MEC bloqueou 3,2 bilhões do orçamento da educação por ordem da área econômica para cumprir o teto de gastos. Ato que prejudicou, principalmente, universidades e institutos federais, causando indignação em entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que classificou o bloqueio dos recursos como inaceitável, especialmente depois das contribuições dos cientistas no grave momento da pandemia. Teremos um desafio enorme pela frente para recuperar os prejuízos que esse governo retrógrado e fascista causou à educação brasileira.

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