O difícil é a vida e seu ofício. As voltas que o senhor M. dá em Paquetá

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista embarca nossos corações na barca que leva a Paquetá.

O cronista fala do senhor M., grande figura humana que sai da Ilha mas sabemos que a Ilha não sairá dele.




O Senhor M., que tem Paquetá tatuada no coração, virá à Ilha de vez em quando, mas não sairá da nossa amizade paquetaense nunca.

Obs.: Este editor, intrometido, intrometeu uma poema do senhor M. no final do belo texto do senhor C. Ah, e uma foto do seste senhor W com o senhor M. e o mascote Açaí em Paquetá.

Da primeira vez que o menino foi à Ilha de Paquetá ele se lembra que viu uma lata de cerveja Brahma, daquelas pesadas, boiando nas águas da Estação das Barcas da Praça XV. Viu também um grupo de golfinhos cinza acompanhando a viagem, como uma escolta. Puxando um pouco mais o fio da memória, o menino se lembrou do emblema da sua camisa de tergal da escola: havia ou não dois golfinhos naquele emblema que se pregava no bolso?


O menino não era mais tão menino quando foi com uma namorada à Paquetá. Já não havia mais golfinhos. Um pessoal no fundo da barca puxava um “da lata” e a marola se confundia com a maresia. Nem mesmo a praia é um lugar tão agradável para se fumar maconha, pensou o rapaz, que até hoje não sabe por que não pediu para dar um dois naquele fininho.


Passar por debaixo da ponte Rio-Niterói ainda hoje lhe causa assombro. Mais ou menos como ver as embarcações afundadas na Baía de Guanabara, quando se está chegando a Niterói. A história submersa nas águas, era o que ele pensava quando menino, quando jovem.


Quando o senhor M. foi morar em Paquetá, há uns dez anos, o homem, de família formada, começou a frequentar a ilha, ainda que timidamente. Ele estava hospedado no apartamento do senhor M. , aquele cuja cozinha era toda de azulejo azul, quando sua filha, ainda de colo, não conseguiu dormir. O homem enquanto pai não teve dúvidas: pôs a criança no carrinho e saiu para perto do mar. Sentou-se em um banco de pedra, acendeu um cigarro. Esperou a menina adormecer. Enquanto esperava, ficou matutando a respeito da vida. As noites de Paquetá eram assim, feitas sob medida para a contemplação.


Daquele apartamento da rua Dois Irmãos dava para ver um campo de futebol de tamanho oficial. O filho do homem ainda não era tão afeito a futebol assim, que pena. O senhor M. se gabava dizendo que já jogara futebol naquele campo, que conhecia o senhor A., craque de futebol, morador da ilha.
Não era mentira.

De quando em quando, o homem sonhava acordado: ele aproveitava o passe do senhor A. para marcar um gol antológico de fora da área. Uma pintura. Nada mal para um cinquentão, rapaz, dizia-lhe a voz de sua consciência praticamente beirando as nuvens.


O senhor M. fez muitos amigos na ilha. Músicos; jornalistas; leiloeiros; cineastas; professores; arquitetos, pescadores… E muitos, mas muito mesmo, condutores de Eco-táxi. O homem se lembra de um rapaz que tinha sido amigo do Lucas Paquetá, do jogador de futebol. Que coisa, a sorte não lhe sorrira. O joelho, sempre o joelho, não aguentou. Cada um ficou em sua ilha com um oceano de distância.


Que loucura, parece que foi ontem. Esse pessoal da ilha atravessou uma pandemia ali, ilhados. Por um ano e pouco, quase dois, o senhor M. não deu as caras em terra firme. Os habitantes da ilha tornaram-se ainda mais amigos, ainda mais solidários. Quem passa por uma pandemia, com o governo que se tinha, passa por qualquer coisa, e aprende uma lição para sempre: a vida é essa.


A esta altura, o senhor M. já morava na casa lá da Cocheira, um lugar que poderia ser aproveitado como produtor de energia aeólica de tanto vento que bate por ali. Aquelas hélices decerto poderiam produzir luz suficiente para iluminar a ilha inteira, pensava o coração do homem que por um momento batia empreendedor.


Mas quem quer saber de tanta luz? Luz demais ofusca a vida. De dia, aquele amarelo ouro, de causar desvarios de luz e sombra. À noite, outra onda: as sombras, cada vez mais espessas, os silêncios, os aromas noturnos, as palpitações das árvores e dos cantos. Um peixe prata pulando. O barulho do avião em sua rota costumeira. O pneu do Eco-Táxi se arrastando na lama. A porta a ranger. O trabalho silencioso das formigas sobre as paredes brancas. Um tanto de areia na ferida do joelho depois da queda de bicicleta, mesmo de tanto esfrega-esfrega. Depois sara, querido. A vida é assim.


Em tudo isso o homem pensou quando soube da notícia do retorno do senhor M. à terra firme, pelo menos até segunda ordem. Em Bangu, pelo que se consta, não há lugar para tarrafas. Mas ela seguirá firme, suspensa no ar. Ou melhor, suspensa em uma parede.


E eu vou atravessando a Baía mais uma vez. Olho para cima e vejo a ponte. Mais uns quinze minutinhos, estou de volta ao Rio de Janeiro, ao centro do Rio do Janeiro. Ao Rio, ao Rio. Volto menino, jovem adulto, homem feito, burro velho.

Morar em paquetá

É Levantar no sol,
deitar nas nuvens.
Como diria: é o que sobrou da humanidade.
Ainda.
Espero q resista
nesse acordo mínimo (diante da nossa insanidade)
que é ter uma certa paz e garantia de que amar vale mais que odiar,
e por isso mesmo
o maluco daqui não quer ser e ter a loucura lá de fora.

Isso faz daqui uma certa acertada mágica

Nas casas de muro baixo
Nos cheiros das noites,
E nas manhãs que com manha amanhece.
Dorme.
Respira e
acorda nas solidariedades .
E assim segue os dias.
Daqui volto mió
pras bandas de lá.
Pras Bandas daqui,
estarei por aqui,
Pois é mió a loucura daqui rs
Daqui, não vou partir,
Sem nunca mais voltar


Beijão procês (Senhor M.)

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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