De onde vem a autonomia total do juiz Sérgio Moro? Essa história começa antes da Lava Jato.
Em 2005, o empresário Sérgio Amílcar de Aguiar Maia, genro do ex-governador do Paraná Nei Braga, foi acusado de envolvimento num caso de fraude em consórcio. A base da acusação eram duas delações premiadas, colhidas por Moro, já responsável por uma das varas federais criminais do Paraná.
Mas o Ministério Público Federal entendeu que as provas eram frágeis e não denunciou Sérgio Amílcar. O juiz, Sérgio Moro, não concordou e insistiu para que os procuradores denunciassem Amílcar.
Pelo Código de Processo Penal, o magistrado até pode fazer isso, mas o correto seria enviar a denúncia para o Procurador Geral da República, chefe do Ministério Público. Ele preferiu devolver aos procuradores locais. Resultado: o MP refez a denúncia, incluindo Sérgio Amílcar, como queria Moro, e ele foi condenado.
Dez anos depois, Sérgio Amílcar ainda luta nos tribunais para derrubar o que considera abuso do juiz paranaense. Um das alegações é que Moro, tendo participado das investigações, na qualidade de juiz que colheu as delações, não poderia presidir o julgamento.
Até agora, o máximo que conseguiu foi reduzir a pena aplicada por Moro, mas o que ele quer é anular os atos praticados pelo juiz. “Foi abuso”, escreveu seu advogado, Carlos Alberto Farracha de Castro, num dos recursos apresentados.
O caso do consórcio Garibaldi é um dos primeiros que Sérgio Moro julgou com base na delação premiada, e talvez seja um dos primeiros do Brasil. O exemplo serve para mostrar que a prática da delação premiada não é incomum nas varas em que Moro trabalha.
No caso da operação Lava Jato, nove delações foram apresentadas por uma advogada que, até alguns anos atrás, era pouco conhecida em São Paulo, onde sempre advogou. Concluídas as delações, Beatriz Catta Preta abandonou as defesas e foi para os Estados Unidos, depois de fazer acusações genéricas de que estaria sendo pressionada.
Sua passagem pelo Paraná pode render a Beatriz Catta Preta dificuldades bem concretas, além das pressões que disse ter recebido. É que um advogado, criminalista famoso, manifestou a amigos sua revolta com a atitude do marido da advogada.
Ex-policial, o marido de Beatriz teria procurado um cliente desse advogado famoso, preso na Lava Jato, e negociado a liberdade em troca dos honorários da esposa e, claro, da delação do acusado.
O advogado esbravejou, mas, diante da vontade do cliente de sair da prisão do Paraná, acabou obrigado a passar a procuração para Beatriz. O caso, em tese, pode parar no tribunal de ética da OAB, já que um advogado não pode sair à cata de clientes de colegas.
A delação concentrada numa só advogada tem outro problema. A confissão deve ser sigilosa, para não contaminar outros depoimentos. Mas, sendo advogada de réus que se acusam entre si, Beatriz é o elo que quebra o princípio da confidencialidade e, advogando para mais de um delator, ela pode preparar depoimentos de um e de outro, para que as narrações guardem coerência e as histórias tenham verossimilhança.
Coisas estranhas acontecem na Vara de Moro, não só nos casos das delações. Em 2005, o advogado Roberto Bertholdo, que tem fama de truculento, foi preso sob acusação de ameaçar testemunhas e grampear o celular e o telefone da casa do juiz.
Denunciado, Roberto Bertholdo acabou condenado, deixou Curitiba e se mudou para Brasília. Segundo o que se apurou à época, o advogado fazia parte de um grupo que costumava grampear políticos e autoridades, para colher informações privilegiadas e negociá-las.
Nascido em Maringá, filho de professor universitário, Sérgio Moro protagoniza hoje o que um advogado chama de processo sem defesa. Esse advogado, que representa réus na Lava Jato, diz que a defesa é só para constar.
“A Polícia Federal, no papel dela, investiga e acusa. O Ministério Público recebe o inquérito, analisa, e acusa. O juiz recebe a denúncia e também acusa, como se fizesse parte do Ministério Público. Ao réu, caberia se defender, mas ele só tem chance no processo se fizer a delação, em que ele se auto acusa e acusa outra pessoa, para poder ter algum benefício. O direito de defesa desapareceu”, afirma esse experiente profissional.
No que é chamado de estado democrático de direito (o contrário da ditadura), uma pessoa sozinha não pode tudo. Mas os advogados que atuam na Lava Jato encontraram muralhas até agora intransponíveis para tentar garantir a defesa dos réus.
O primeiro obstáculo começa no Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, no Rio Grande do Sul, onde as decisões de Moro poderiam ser revistas. Mas, no que até prova em contrário não passa de uma coincidência, o desembargador que recebe os recursos (“prevento”) é do Paraná, e na corte não é segredo para ninguém que priva da amizade e da admiração recíproca de Sérgio Moro, com troca de elogios em trabalhos acadêmicos.
Sem chance no Tribunal da 4ª. Região, os advogados batem no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, onde o caso foi concentrado nas mãos de um ministro convocado, ou seja, ele está tapando buraco em razão da ausência de um titular.
Como o sonho de todo juiz interino é se tornar titular, ele não quer polêmica, o que aconteceria caso revogasse alguma decisão de Moro. “O receio é que uma polêmica tire as chances de nomeação”, comenta o advogado.
A esperança da defesa é o Supremo Tribunal Federal, mas também ali, no primeiro julgamento até agora, houve decepção. Os ministros consideraram que as prisões preventivas não se justificavam, mas em vez de simplesmente colocarem os réus em liberdade, para que respondam ao processo fora da cadeia, eles determinaram o uso da tornozeleira eletrônica. “Todos eles têm medo da manchete do Jornal Nacional”, diz o advogado.
Em situações como esta, resta o grito da sociedade civil organizada, como a OAB. Até agora não se ouviu dela nem um sussurro em defesa do estado de direito.
A razão, segundo esse advogado, é que o presidente da Ordem, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, já contou aos colegas mais próximos que quer se sentar na cadeira que já foi de gigantes como Evandro Lins e Silva, no Supremo Tribunal Federal, cassado durante a ditadura. Assim como no caso do interino do STJ, polêmica só atrapalharia os planos de Furtado Coêlho.
Com dificuldade no Tribunal, no STJ, no Supremo e na OAB, talvez o governo eleito por 54 milhões de brasileiros pudesse tomar alguma atitude, inclusive coibindo abusos claros como a escuta clandestina na prisão da Polícia Federal.
“O ministro da Justiça, comprovada a escuta, teria o dever de afastar os envolvidos e até o diretor da Polícia Federal no Paraná, para resguardar direitos constitucionais”, comenta esse advogado. Mas o ministro, José Eduardo Cardozo, também foge da polêmica.
“A Lava Jato tem um direcionamento claro: o PT e seus aliados. Não sei identificar que mão se move por trás disso. Talvez seja a própria saturação da sociedade com a corrupção, e as pessoas com algum poder de decisão nesse processo vejam uma oportunidade para se destacar, sem contrariar a suposta opinião pública. Mas é um grande erro. Está sendo gerado um monstro, que amanhã não poupará ninguém”, diz o advogado, que pediu anonimato em razão do prejuízo profissional e pessoal que teria se tivesse seu nome publicado aqui.