O Direito dos Princípios

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Por Antônio Escosteguy Castro, publicado em Sul 21 – 

A Lei 13.467/17, conhecida como a Reforma Trabalhista, é o maior ataque de nossa história aos direitos dos trabalhadores. Esta lei é o fruto de um regime ilegítimo, que nasceu de um golpe parlamentar, e foi aprovada por um Congresso que é rejeitado por mais de 90% da população. Sua certidão de nascimento a define com precisão. Trata-se, na verdade, de uma Contra-Reforma, e assim deverá ser considerada.

Foto: Guilherme Santos / Sul21

A Contra-Reforma Trabalhista foi elaborada de maneira cuidadosa pelos centros pensantes do empresariado nacional e para que pudesse ter máxima eficiência estendeu-se por três níveis. No primeiro nível, flexibilizaram-se e precarizaram-se direitos materiais assegurados aos trabalhadores na legislação então vigente. No segundo nível, fragilizou-se a organização sindical, de modo a que os trabalhadores não tenham a devida força para resistir à retirada de direitos. E no terceiro nível, dificultou-se o acesso à Justiça do Trabalho, onde tanto as normas como as atitudes patronais mais deletérias poderiam ser questionadas.

Mas a correlação de forças política do momento de sua aprovação, com um governo altamente impopular e um congresso acuado por denúncias de corrupção, não permitiu que este ataque aos direitos dos trabalhadores tivesse a intensidade e a amplitude que os setores patronais almejavam. Tanto é assim que no 16º Congresso Brasileiro do Agronegócio, realizado em princípios de agosto em São Paulo, num painel apropriadamente chamado de “Modernização Trabalhista” foi defendida abertamente a extinção da Justiça do Trabalho e a alteração dos artigos 7º e 8º da Constituição Federal que ” atrapalham” aquela modernização de nossa legislação…




Aqui reside o pressuposto essencial deste texto. A Carta Magna de 1988 constitucionalizou os princípios e os institutos fundamentais do Direito do Trabalho. Esta constitucionalização foi o resultado da luta popular contra a Ditadura Militar e o reconhecimento da importância do Movimento Sindical na derrocada daquele regime. Acostumados com a estabilidade da CLT, que vinha da Era Vargas e que mesmo os militares não tinham atacado em sua essência, subestimamos a importância da constitucionalização do Direito do Trabalho. Pois bem, esta é, agora, a base material central de nossa luta de resistência.

A Contra-Reforma não alterou a Carta Magna e, portanto, não revogou os princípios essenciais e fundantes do Direito do Trabalho. Ao contrário do que propaga nossa grande mídia plutocrática, não foi aprovada uma Nova CLT, mas alterados alguns dispositivos que adentram uma CLT que não foi igualmente modificada em seus parâmetros fundamentais, emoldurados pela Constituição Federal.

Não só os artigos 7º e 8º da Carta Magna não foram tocados, como também permanecem íntegros o art. 3º, o art.9º, o caput do art. 468, bem como outros dispositivos da CLT que se constituem em seus pilares jurídicos e continuam de pé. A Contra-Reforma há de ser lida, interpretada e aplicada (ou não) sob este prisma.

Some-se a isto as disposições das Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil. Uma Convenção ratificada é de observação obrigatória pelo Estado-membro, que deve adequar sua legislação àquelas disposições. O teor do §2º do art. 5º da Carta Magna concede status constitucional às normas de tratados internacionais que digam respeito a direitos fundamentais, como é o caso de diversas Convenções da OIT, como as de nº 98,151 e 154, que estabelecem que a negociação coletiva tem como objetivo obter condições mais favoráveis para o trabalhador.

Já houve quem buscasse definir o Direito Penal numa só expressão, para efeitos didáticos, e consagrou-se a expressão o ” Direito das Nulidades”. Se o mesmo esforço agora fizermos em relação ao Direito do Trabalho, este deverá surgir como o “Direito dos Princípios”. Nada mais adequado, quando se observar que as bases originais de um Direito do Trabalho estão fundadas no art.1º da Constituição, quando se fala na Dignidade da Pessoa Humana e no Valor Social do Trabalho. A grande filósofa alemã Hannah Arendt afirmava a máxima ” I am what I do” — Eu sou o que eu faço, demonstrando a importância do trabalho para a definição mesma da identidade do ser humano.

O direto positivo ordinário não tem o condão de revogar princípios. Pode, no máximo, mitigar alguns de seus efeitos. Mas a aplicação da lei deve conformar-se à estrutura dos princípios fundantes do Direito do Trabalho que, repita-se uma vez mais, por necessário, não foram tocados pela Contra-Reforma.

Isto não significa abrir mão de disputar, em primeiro lugar, a ilegitimidade da Contra-Reforma e em segundo lugar, a inconstitucionalidade pura e simples de boa parte de suas disposições.

A Lei 13.467/17 há de ser rejeitada por ser o fruto podre de um governo ilegítimo e de um congresso corrupto, mas ainda continuará gerando seus deletérios efeitos por um bom tempo. E, infelizmente, o Supremo Tribunal Federal, guardião de nossa Constituição, se não é um cúmplice deste golpe, no mínimo tem estado na vanguarda do ataque aos direitos dos trabalhadores, desestimulando a que coloquemos o recurso àquela Suprema Corte no centro de nossas ações.

A estratégia do enfrentamento judicial da Contra-Reforma, portanto, não deve ser o recurso ao controle concentrado, mas a luta nas instâncias inferiores da Justiça do Trabalho, buscando disputar o sentido da legislação em sua (não) aplicação. Há de invocar-se a eventual inconstitucionalidade no caso concreto em exame.

Mas é prudente valer-se de outros recursos à nossa disposição. Reiterando a higidez dos princípios e dos marcos normativos constitucionais do Direito do Trabalho, há de se buscar a interpretação conforme a Constituição, a interpretação mais favorável à letra da Carta Magna, valendo-se exatamente de seus princípios e da jurisprudência hoje dominante, particularmente no âmbito trabalhista.

Neste mesmo sentido, verifica-se que há no texto da lei algumas disposições, como o alcance da assistência judiciária gratuita e a as limitações à fixação do dano moral, que são inferiores àquelas que a legislação assegura ao cidadão comum, seja no CPC, seja no Código Civil ou no Código de Defesa do Consumidor. Nosso ordenamento jurídico não admite um instituto que para o trabalhador seja mais restrito que aquele assegurado ao cidadão, o que propiciaria uma discriminação odiosa e proibida. A aplicação do alcance da AJG ou dos danos morais, portanto, haverá de moldar-se aos princípios estabelecidos na legislação geral do ” cives”, do cidadão. E lembremos que hoje, pela nova redação do art.8º da CLT, o direto comum é fonte do direito do trabalho. A CLT não poderá ser interpretada concedendo menos que o Direito e o Processo Civil…

Não deverá ser diferente nas mesas de negociação que se instalarão de ora em diante. A leitura dos pontos a negociar haverá de ser adequada aos princípios constitucionais gerais do Direito do Trabalho. Por exemplo, a possibilidade de negociação abaixo dos limites da lei. Se ultrapassada a barreira das Convenções da OIT que a vedam, ainda assim sua execução levantaria dois óbices. : o primeiro, o núcleo mesmo dos direitos fundamentais assegurados na Carta Magna, que não pode ser reduzido e, o segundo, a interpretação constitucional direta do art. 7º, que exige, sim, contrapartidas, como se infere da paradigmática decisão do RE 590451, sobre o Plano de Demissão Incentivada do BESC. A disposição do §2º do art. 611 que afirma que a ausência de ” contrapartida expressa” não nulifica a cláusula não significa que possa ser negociada redução de direitos sem sua existência…

Nos anos 70, em plena ditadura militar, sob a inspiração do grande jurista Roberto Lyra Filho, emergiu o movimento do Direito Achado na Rua, para resgatar sua dimensão emancipatória, afirmando que o direito nasce da ação dos movimentos sociais. Nestes tempos em que sem dúvida vivemos um estado de exceção não declarado, onde se restringe o direito à defesa, se sepulta a presunção de inocência e agora se busca eliminar o princípio da igualdade de todos perante a lei (reconhecendo, como já dizia Rui, que a lei deve tratar desigualmente os desiguais) haveremos de recuperar seus conceitos, para construir uma jurisprudência que afinal expresse o contrário do que as elites quiseram nos impor com esta Contra-Reforma.

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Antônio Escosteguy Castro é advogado.

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