O discurso de Bolsonaro na ONU, analisado e confrontado com dados

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Por Felipe Betim e Flávia Marreiro, publicado em El País – 

Belicoso, presidente falou à base interna e a seus aliados no cenário global. Sobrou pouco espaço para a defesa da agenda liberal

Em 32 minutos, o presidente Jair Bolsonaro apresentou nesta segunda-feira suas principais ideias ao mundo na Assembleia Geral da ONU em Nova York. Num discurso feito sob medida para manter coesa sua base ainda fiel no Brasil, de cerca de 30% da população, o ultradireitista desafiou seus críticos no cenário doméstico e mundial, pregou contra o “socialismo” e reivindicou o golpe militar de 1964 como uma vitória contra a influência comunista cubana na região. Sem temer boicotes globais ao agronegócio brasileiro, ele defendeu sua política ambiental para a Amazônia, que reivindicou como um tema apenas brasileiro, e criticou as extensões de terras destinadas aos povos indígenas em meio à crise de imagem por causa das queimadas recordes na floresta.

O discurso mistura alguns trechos acurados, com outros falsos e imprecisões históricas. Abaixo, analisamos e confrontamos com dados a apresentação do presidente brasileiro. Em itálico está a íntegra das palavras de Bolsonaro, conforme distribuída pelo Planalto. Os comentários vão em parênteses.




Contra Cuba e reivindicação do golpe de 1964

(Apesar de não fazer parte de não fazer parte da íntegra do Planalto, Bolsonaro começou o discurso agradecendo “a Deus pela vida”.)

“Apresento aos senhores um novo Brasil, que ressurge depois de estar à beira do socialismo. Um Brasil que está sendo reconstruído a partir dos anseios e dos ideais de seu povo. No meu Governo, o Brasil vem trabalhando para reconquistar a confiança do mundo, diminuindo o desemprego, a violência e o risco para os negócios, por meio da desburocratização, da desregulamentação e, em especial, pelo exemplo”.

(Bolsonaro se apresenta como refundador do Brasil, e não em uma linha de continuidade com os demais presidentes da era democrática. Alia-se à cruzada contra o “socialismo”, também pregada por outros líderes ultranacionalistas de direita, e para esta operação, coloca no mesmo escopo, sem qualquer diferenciação ou base em dados ou práticas, Governos como o de Nicolas Maduro na Venezuela, que de fato se descreve como “socialista”, e gestões de esquerda ou centro-esquerda, como as do PT no Brasil, de majoritária conciliação com políticas de mercado. Neste primeiro trecho, diz que o intuito é mostrar que o país é seguro para investidores estrangeiros e atrativo pelas reformas liberais defendidas pelo Governo —no momento, porém, há desconfiança entre um grupo importante de investidores, justamente por causa da política ambiental do Planalto. Outros reclamam da instabilidade política do Governo e centram suas esperanças na coalizão de centro-direita no Congresso liderada por Rodrigo Maia.)

“Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições. Em 2013, um acordo entre o Governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10.000 médicos sem nenhuma comprovação profissional. Foram impedidos de trazer cônjuges e filhos, tiveram 75% de seus salários confiscados pelo regime e foram impedidos de usufruir de direitos fundamentais, como o de ir e vir. Um verdadeiro trabalho escravo, acreditem…Respaldado por entidades de direitos humanos do Brasil e da ONU!”

(Aqui começa um inusual longo trecho para falar do Programa Mais Médicos, criado sob o PT, que trouxe médicos cubanos ao Brasil por meio de um convênio com a OPAS, a Organização Pan Americana da Saúde, que é ligada à ONU. O ultradireitista força, atropelando fatos e contexto histórico, uma equivalência entre o papel de agentes cubanos na América Latina nos anos 60, em plena Guerra Fria, e os médicos cubanos na última década e meia. Bolsonaro mente ao dizer que não havia comprovação de formação médica dos profissionais cubanos, uma escola de medicina com reconhecimento mundial. Cita corretamente, no entanto, pontos controversos do programa, como o pagamento de boa parte da remuneração ao Governo cubano, via OPAS, ou a restrição para trazer familiares —embora não escrita, ela existiam sendo a saída de cubanos da ilha bastante restrita. Críticos do programa dentro e fora do Brasil de fato criticavam o formato, onde os médicos cubanos são espécie de funcionários terceirizados de seu Governo. A bandeira contra o negócio médico cubano é comum à direita anticastrista dos EUA, que também classifica o modelo de  “trabalho escravo”. É um dos pontos onde Bolsonaro se alinha a Trump contra o que chamam de “troika da tirania”, ou Venezuela, Cuba e Nicarágua. A cooperação cubana não tem formato único, porém. Ela varia de país para país. Na Venezuela, há relatos e documentos que mostram que os médicos cubanos tinham, sim, restrições para ir e vir e respondiam a uma espécie de toque de recolher. Ante a precariedade da vida em Cuba e as restrições também na Venezuela, o Brasil, não vierem à tona relatos do gênero.

“Antes mesmo de eu assumir o Governo, quase 90% deles deixaram o Brasil, por ação unilateral do regime cubano. Os que decidiram ficar, se submeterão à qualificação médica para exercer sua profissão. Deste modo, nosso país deixou de contribuir com a ditadura cubana, não mais enviando para Havana 300 milhões de dólares todos os anos.”

Já na campanha, Bolsonaro repetiu desqualificações contra os profissionais cubanos. Era uma promessa acabar o programa, feita especialmente à classe médica organizada brasileira, que sempre se opôs aos Mais Médicos. Neste contexto, Havana de fato anunciou o fim da cooperação, ainda antes de Bolsonaro assumir. O Governo ficou com o desafio de preencher as vagas deixadas pelos cubanos no programa, uma iniciativa considerada exitosa no atendimento primário especialmente em pequenas cidades, locais de difícil acesso e comunidades indígenas. A gestão Bolsonaro lançou o programa Médicos pelo Brasil, em agosto, ainda em fase de implementação paulatina, que oferece salários mais altos para lugares remotos. A dúvida é só isso será suficiente para atrair os profissionais —enquanto isso, circula na Câmara uma proposta de readmitir por mais dois anos, sem prova de validação do diploma, os médicos cubanos que ficaram no Brasil.

“A história nos mostra que, já nos anos 60, agentes cubanos foram enviados a diversos países para colaborar com a implementação de ditaduras. Há poucas décadas tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados! Civis e militares brasileiros foram mortos e outros tantos tiveram suas reputações destruídas, mas vencemos aquela guerra e resguardamos nossa liberdade. Na Venezuela, esses agentes do regime cubano, levados por Hugo Chávez, também chegaram e hoje são aproximadamente 60 mil, que controlam e interferem em todas as áreas da sociedade local, principalmente na Inteligência e na Defesa. A Venezuela, outrora um país pujante e democrático, hoje experimenta a crueldade do socialismo. O socialismo está dando certo na Venezuela! Todos estão pobres e sem liberdade!”

(Bolsonaro faz um salto do Mais Médicos à atuação de agentes cubanos na Guerra Fria e, no púlpito da ONU, repete o que faz sempre: justifica o golpe militar de 1964 no Brasil como uma medida para conter a “ameaça comunista”. Defensor da repressão do regime militar e exaltador de um torturador, Bolsonaro nunca menciona as vítimas da ditadura e ironiza até vítimas de ditaduras estrangeiras, como a de Augusto Pinochet no Chile. Presidente cita a já a reportada enorme influência dos cubanos na Venezuela do chavismo.)

“O Brasil também sente os impactos da ditadura venezuelana. Dos mais de 4 milhões que fugiram do país, uma parte migrou para o Brasil, fugindo da fome e da violência. Temos feito a nossa parte para ajudá-los, através da Operação Acolhida, realizada pelo Exército Brasileiro e elogiada mundialmente. Trabalhamos com outros países, entre eles os EUA, para que a democracia seja restabelecida na Venezuela, mas também nos empenhamos duramente para que outros países da América do Sul não experimentem esse nefasto regime. O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido.”

(Bolsonaro lamenta então o êxodo venezuelano por causa da crise profunda no país de Maduro e aproveita como deixa para criticar o Foro de São Paulo, organização dos partidos de esquerda e extrema esquerda fundado nos anos 90, com a crise do socialismo real. O grupo, até hoje integrado pelo PT e criticado por apoiar sem restrições os regimes venezuelanos e cubanos, virou uma espécie de obsessão da ultradireita. Apesar das dimensões e influências modestas do bloco atualmente, a iniciativa foi alçada ao papel de inimigo a ser combatido e parte importante na engrenagem da polarização.)

Defesa da plataforma liberal

“Senhoras e Senhores,

Em busca de prosperidade, estamos adotando políticas que nos aproximem de países outros que se desenvolveram e consolidaram suas democracias. Não pode haver liberdade política sem que haja também liberdade econômica. E vice-versa. O livre mercado, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil. A economia está reagindo, ao romper os vícios e amarras de quase duas décadas de irresponsabilidade fiscal, aparelhamento do Estado e corrupção generalizada. A abertura, a gestão competente e os ganhos de produtividade são objetivos imediatos do nosso Governo.”

(Neste segundo e  bastante sucinto bloco, Bolsonaro faz uma defesa da plataforma liberal de seu Governo, tocada pela área econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes. Neste quesito, há mais planos do que resultados a apresentar, e uma percepção crescente entre os investidores de que a radicalização da guerra ideológica pode prejudicar as ambições de Guedes.  A recuperação econômica é lenta e o Governo está emparedado por uma situação fiscal crítica. O Planalto lançou um ambicioso programa de privatização e espera para ver seu poder de atração, num cenário em de desaceleração econômica global.)

“Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. Em apenas oito meses, concluímos os dois maiores acordos comerciais da história do país, aqueles firmados entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e a Área Europeia de Livre Comércio, o EFTA. Pretendemos seguir adiante com vários outros acordos nos próximos meses. Estamos prontos também para iniciar nosso processo de adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já estamos adiantados, adotando as práticas mundiais mais elevadas em todo os terrenos, desde a regulação financeira até a proteção ambiental.”

(Apesar da retórica antiglobalista, o Governo conseguiu fechar o acordo do Mercosul com a União Europeia. O caminho até a ratificação, porém, é longo, e depende da aprovação dos Parlamentos europeus —até agora a Europa, especialmente a França de Emmanuel Macron, é a que mais reage negativamente à política ambiental de Bolsonaro, por exemplo. Sua retórica belicosa também não ajuda na campanha do Planalto para entrar na OCDE. Uma beneficiada insuspeita do discurso,  analisa Oliver Stunkel, é a China, que não se abala com a retórica e ar práticas ambientais do atual Governo).

Crise da Amazônia

Senhorita Ysani Kalapalo, agora vamos falar de Amazônia. Em primeiro lugar, meu Governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e o mundo. O Brasil é um dos países mais ricos em biodiversidade e riquezas minerais. Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental e permanece praticamente intocada. Prova de que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente.

(Bolsonaro se defende atacando, a respeito da crise amazônica. Exibe como troféu a indígena Ysani Kalapalo, a quem cita explicitamente no discurso. Trata-se de uma youtuber originária da bacia do Xingu questionada por grande parte das lideranças indígenas no país. Quanto à avaliação do nível de desmatamento na Amazônia, em relatório no final de 2018, a ONG WWF concluiu que 20% da Amazônia brasileira foi destruída desde 1970, segundo análise de 50 pesquisadores com base em pesquisas de outras 19 organizações. Nos últimos dez anos, entre 2008 e 2018, o sistema PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Científica (INPE), registrou o desmatamento de 74.000 quilômetros quadrados de selva amazônica – área 1,5 vezes maior que a do Estado do Rio de Janeiro. Ainda assim, esse período registrou as menores taxas de desmatamento da história. As informações de 2019, medidas por um sistema que fotografa a situação dia a dia, apontam um aceleração do desmatamento sob Bolsonaro.)

“Nesta época do ano, o clima seco e os ventos favorecem queimadas espontâneas e criminosas. Vale ressaltar que existem também queimadas praticadas por índios e populações locais, como parte de sua respectiva cultura e forma de sobrevivência. Problemas qualquer país os têm. Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico. É uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade e um equívoco, como atestam os cientistas, afirmar que a nossa floresta é o pulmão do mundo.”

(Bolsonaro atribui a alta das queimadas apenas a fatores sazonais e climáticos, mas especialistas apontam sua retórica contra “a indústria da multa ambiental” e o estrangulamento dos órgãos de controle como um incentivo explícito às queimadas. A análise das áreas queimadas e sua extensão também rebatem a ideia do presidente de atribuir o fenômeno apenas às populações tradicionais. Num ponto, Bolsonaro é acurado: de fato que a Amazônia não é o pulmão do mundo. Na verdade, as algas marinhas são as maiores responsáveis por produzir o oxigênio do planeta. Contudo, a floresta é responsável por regular o ciclo de chuvas na região, tão importante para o equilíbrio dos rios e oceanos. E, por isso, é essencial para deter as mudanças climáticas. Segundo disse em nota a ONG brasileira Observatório do Clima, as políticas de Bolsonaro “trazem risco imediato para toda a humanidade”. “A ciência nos diz que temos até 2030 para cortar emissões de carbono em 45% se quisermos ter chance de estabilizar o aquecimento da Terra em 1,5oC e evitar seus piores efeitos. O desmatamento descontrolado do cerrado e da Amazônia pode, sozinho, botar a perder a meta global”, diz a nota da entidade.)

Valendo-se dessas falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista. Questionaram aquilo que nos é mais sagrado: a nossa soberania! Um deles por ocasião do encontro do G7 ousou sugerir aplicar sanções ao Brasil, sem sequer nos ouvir. Agradeço àqueles que não aceitaram levar adiante essa absurda proposta. Em especial, ao presidente Donald Trump, que bem sintetizou o espírito que deve reinar entre os países da ONU: respeito à liberdade e à soberania de cada um de nós.

(Sem citá-lo, Bolsonaro faz neste trecho referência aos embates com o francês Emmanuel Macron. Durante a reunião do G7, Macron puxou para si os holofotes sobre a crise amazônica, reivindicando papel especial no debate por causa da Guiana Francesa. O fato de usar a expressão “nossa Amazônia” acabou dando combustível ao discurso nacionalista e soberanista de Bolsonaro, que ressoa em parte de sua base, em especial os militares. O argumento soberanista puro é questionado por lideranças da luta contra o aquecimento global, como a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. “Essa acusação de ingerência é porque há uma situação de falta de gerência que deixa o mundo preocupado. É a floresta mais importante do planeta, responsável por 17 bilhões de toneladas por dia de água que são importantes para manter o equilíbrio dos oceanos e o regime de chuvas, sem o qual não tem agronegócio nem nada”, disse a ex-senadora ao EL PAÍS. “E quanto mais temos governança interna, menos temos que ficar preocupado com qualquer crítica. Durante minha gestão, nunca vi ninguém dando declaração de que precisava discutir a questão da Amazônia porque a situação estava fora do controle”, seguiu).

Hoje, 14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena, mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós. Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse. Existem, no Brasil, 225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados. Cada povo ou tribo com seu cacique, sua cultura, suas tradições, seus costumes e principalmente sua forma de ver o mundo. A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia. Infelizmente, algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.

(Bolsonaro, de novo, apela ao nacionalismo e atribui a uma conspiração internacional de ONGs o interesse pela Amazônia e na proteção dos povos indígenas. A Constituição brasileira, de 1988, ordenou a demarcação de terras indígenas em até 5 anos, e reconhece aos índios, em seu artigo 231, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A desaceleração das demarcações vem desde o Gestão Dilma Rousseff. Durante os dois anos de Michel Temer, o quadro piorou. A única terra que chegou a ser homologada nesse período foi revertida na Justiça. Mas essa questão ganhou barreiras ainda maiores desde que Bolsonaro assumiu o Planalto, em janeiro. Foi o primeiro presidente a falar abertamente que não retomaria as demarcações em um contexto em que 63% das 1.290 terras indígenas brasileiras ainda aguardam providências do Governo para serem reconhecidas ou homologadas.)

O Brasil agora tem um presidente que se preocupa com aqueles que lá estavam antes da chegada dos portugueses. O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros. E esses territórios são enormes. A reserva Ianomâmi, sozinha, conta com aproximadamente 95 mil km2, o equivalente ao tamanho de Portugal ou da Hungria, embora apenas 15 mil índios vivam nessa área. Isso demonstra que os que nos atacam não estão preocupados com o ser humano índio, mas sim com as riquezas minerais e a biodiversidade existentes nessas áreas.

(A Constituição determina que é necessária uma lei para regulamentar a mineração nas terras indígenas. Como isso nunca foi feito, a mineração segue ilegal. Além disso, o artigo 231 da Carta determina que cabe às populações nativas o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” nos territórios demarcados. Também afirma que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra”. A exploração de áreas indígenas provoca resistência mesmo entre apoiadores de Bolsonaro: 80% da população, segundo pesquisa Atlas Político, é contra a proposta.)

A Organização das Nações Unidas teve papel fundamental na superação do colonialismo e não pode aceitar que essa mentalidade regresse a estas salas e corredores, sob qualquer pretexto. Não podemos esquecer que o mundo necessita ser alimentado. A França e a Alemanha, por exemplo, usam mais de 50% de seus territórios para a agricultura, já o Brasil usa apenas 8% de terras para a produção de alimentos. 61% do nosso território é preservado! Nossa política é de tolerância zero para com a criminalidade, aí incluídos os crimes ambientais. Quero reafirmar minha posição de que qualquer iniciativa de ajuda ou apoio à preservação da Floresta Amazônica, ou de outros biomas, deve ser tratada em pleno respeito à soberania brasileira. Também rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e econômicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções. Estamos prontos para, em parcerias, e agregando valor, aproveitar de forma sustentável todo nosso potencial.

(Bolsonaro ganhou as eleições prometendo acabar com “a farra das multas do IBAMA” e legalizar atividades econômicas em terras indígenas e reservas ambientais. Desde que assumiu, vem promovendo um estrangulamento financeiro e institucional dos órgãos de fiscalização. No último dia 16 de setembro, o Palácio do Planalto ofereceu um inédito respaldo a garimpeiros que atuam em exploração ilegal em áreas protegidas da Amazônia. Eles foram recebidos por várias autoridades do primeiro escalão, entre elas o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Receberam a promessa de que legalização de suas atividades e de mudança na lei que permite o IBAMA destruir seus equipamentos)

Agenda anticorrupção

O Brasil reafirma seu compromisso intransigente com os mais altos padrões de direitos humanos, com a defesa da democracia e da liberdade, de expressão, religiosa e de imprensa. É um compromisso que caminha junto com o combate à corrupção e à criminalidade, demandas urgentes da sociedade brasileira. Seguiremos contribuindo, dentro e fora das Nações Unidas, para a construção de um mundo onde não haja impunidade, esconderijo ou abrigo para criminosos e corruptos. Em meu Governo, o terrorista italiano Cesare Battisti fugiu do Brasil, foi preso na Bolívia e extraditado para a Itália. Outros três terroristas paraguaios e um chileno, que viviam no Brasil como refugiados políticos, também foram devolvidos a seus países.

(Outra mensagem direcionada à base interna. Na verdade, Cesare Battisti foi considerado foragido do Brasil no dia 14 de dezembro de 2018, quando o país era governado por Michel Temer. O emedebista foi responsável por determinar sua extradição, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal. Nos primeiros dias de janeiro, autoridades da Bolívia prenderam e extraditaram Battisti.)

Terroristas sob o disfarce de perseguidos políticos não mais encontrarão refúgio no Brasil. Há pouco, presidentes socialistas que me antecederam desviaram centenas de bilhões de dólares comprando parte da mídia e do parlamento, tudo por um projeto de poder absoluto. Foram julgados e punidos graças ao patriotismo, perseverança e coragem de um juiz que é símbolo no meu país, o doutor Sergio Moro, nosso atual ministro da Justiça e Segurança Pública. Esses presidentes também transferiram boa parte desses recursos para outros países, com a finalidade de promover e implementar projetos semelhantes em toda a região. Essa fonte de recursos secou. Esses mesmos governantes vinham aqui todos os anos e faziam descompromissados discursos com temas que nunca atenderam aos reais interesses do Brasil nem contribuíram para a estabilidade mundial. Mesmo assim, eram aplaudidos.

(O aceno de Bolsonaro a Sergio Moro se dá depois de semanas de especulações sobre uma possível saída do ex-juiz do Governo. A imagem de Bolsonaro entre apoiadores da Operação Lava Jato não se encontra em seu melhor momento. Está em xeque desde que o presidente começou a interferir direta e ideologicamente em instituições de controle e investigação, como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público. O presidente vem tentando blindar família e aliados de investigações da Justiça, que vem levantando suspeitas de possíveis atividades ilícitas.)

Em meu país, tínhamos que fazer algo a respeito dos quase 70 mil homicídios e dos incontáveis crimes violentos que, anualmente, massacravam a população brasileira. A vida é o mais básico dos direitos humanos. Nossos policiais militares eram o alvo preferencial do crime. Só em 2017, cerca de 400 policiais militares foram cruelmente assassinados. Isso está mudando. Medidas foram tomadas e conseguimos reduzir em mais de 20% o número de homicídios nos seis primeiros meses de meu Governo. As apreensões de cocaína e outras drogas atingiram níveis recorde. Hoje o Brasil está mais seguro e ainda mais hospitaleiro. Acabamos de estender a isenção de vistos para países como Estados Unidos, Japão, Austrália e Canadá, e estamos estudando adotar medidas similares para China e Índia, dentre outros. Com mais segurança e com essas facilidades, queremos que todos possam conhecer o Brasil, e em especial, a nossa Amazônia, com toda sua vastidão e beleza natural. Ela não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora. Não deixem de conhecer o Brasil, ele é muito diferente daquele estampado em muitos jornais e televisões!

(Especialistas consultados pelo EL PAÍS afirmam que a queda de homicídios já era tendência em 2018, algo que ficou comprovado no último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, concordam que ainda é cedo para afirmar que a redução é definitiva e afirmam que fatores relacionados à própria dinâmica do crime e ações locais explicam melhor essa queda.)

Um parênteses para a base evangélica (sem citar ataques a terreiros)

A perseguição religiosa é um flagelo que devemos combater incansavelmente. Nos últimos anos, testemunhamos, em diferentes regiões, ataques covardes que vitimaram fiéis congregados em igrejas, sinagogas e mesquitas. O Brasil condena, energicamente, todos esses atos e está pronto a colaborar, com outros países, para a proteção daqueles que se veem oprimidos por causa de sua fé. Preocupam o povo brasileiro, em particular, a crescente perseguição, a discriminação e a violência contra missionários e minorias religiosas, em diferentes regiões do mundo. Por isso, apoiamos a criação do ‘Dia Internacional em Memória das Vítimas de Atos de Violência baseados em Religião ou Crença’. Nessa data, recordaremos anualmente aqueles que sofrem as consequências nefastas da perseguição religiosa. É inadmissível que, em pleno século XXI, com tantos instrumentos, tratados e organismos com a finalidade de resguardar direitos de todo tipo e de toda sorte, ainda haja milhões de cristãos e pessoas de outras religiões que perdem sua vida ou sua liberdade em razão de sua fé. A devoção do Brasil à causa da paz se comprova pelo sólido histórico de contribuições para as missões da ONU.

(A menção à defesa da liberdade religiosa e à perseguição aos cristãos é uma menção sob medida para os evangélicos, os que mais compõem sua base de apoio —46% dos evangélicos, segundo o Datafolha, apoiam o Planalto. Apesar da bandeira, o presidente não cita os ataques às religiões de matriz africana. Segundo dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e pelo DataLabe, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus. O Disque 100 é um canal para denúncias de violação de direitos humanos, criado em 2011 pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.)

Há 70 anos, o Brasil tem dado contribuição efetiva para as operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Apoiamos todos os esforços para que essas missões se tornem mais efetivas e tragam benefícios reais e concretos para os países que as recebem. Nas circunstâncias mais variadas – no Haiti, no Líbano, na República Democrática do Congo –, os contingentes brasileiros são reconhecidos pela qualidade de seu trabalho e pelo respeito à população, aos direitos humanos e aos princípios que norteiam as operações de manutenção de paz. Reafirmo nossa disposição de manter contribuição concreta às missões da ONU, inclusive no que diz respeito ao treinamento e à capacitação de tropas, área em que temos reconhecida experiência.

(Neste trecho, e apesar dos ataques à própria ONU e ao multilateralismo, Bolsonaro faz uma concessão à elite do Exército brasileiro que integra seu Governo e teve papel crucial em missões, especialmente a do Haiti. O expoente dessa ala governista é o general da reserva, Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional).

Ao longo deste ano, estabelecemos uma ampla agenda internacional com intuito de resgatar o papel do Brasil no cenário mundial e retomar as relações com importantes parceiros. Em janeiro, estivemos em Davos, onde apresentamos nosso ambicioso programa de reformas para investidores de todo o mundo. Em março, visitamos Washington onde lançamos uma parceria abrangente e ousada com o Governo dos Estados Unidos em todas as áreas, com destaque para a coordenação política e para a cooperação econômica e militar. Ainda em março, estivemos no Chile, onde foi lançado o PROSUL, importante iniciativa para garantir que a América do Sul se consolide como um espaço de democracia e de liberdade. Na sequência, visitamos Israel, onde identificamos inúmeras oportunidades de cooperação em especial na área de tecnologia e segurança. Agradeço a Israel o apoio no combate aos recentes desastres ocorridos em meu país. Visitamos também um de nossos grandes parceiros no Cone Sul, a Argentina. Com o presidente Mauricio Macri e nossos sócios do Uruguai e do Paraguai, afastamos do Mercosul a ideologia e conquistamos importantes vitórias comerciais, ao concluir negociações que já se arrastavam por décadas. Ainda este ano, visitaremos importantes parceiros asiáticos, tanto no Extremo Oriente quanto no Oriente Médio. Essas visitas reforçarão a amizade e o aprofundamento das relações com Japão, China, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar. Pretendemos seguir o mesmo caminho com todo o mundo árabe e a Ásia. Também estamos ansiosos para visitar nossos parceiros, e amigos, na África, na Oceania e na Europa. Como os senhores podem ver, o Brasil é um país aberto ao mundo, em busca de parcerias com todos os que tenham interesse de trabalhar pela prosperidade, pela paz e pela liberdade.

(Apesar da declaração de que o Brasil é um país aberto, como escreveu o enviado especial do EL PAÍS a Nova York, Pablo Guimón, o discurso de Bolsonaro tende ponte mais evidentes com seu aliado preferencial, Donald Trump. Outros parceiros da direita global, como Israel, merecem menção. Apesar de o Brasil sediar, em novembro, a cúpula dos BRICs, o grupo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, nenhuma menção foi feita ao bloco. Nem mesmo a China, a maior compradora de produtos brasileiros, recebeu menção.)

Pregação ideológica contra “ideologia de gênero”

Senhoras e Senhores, o Brasil que represento é um país que está se reerguendo, revigorando parcerias e reconquistando sua confiança política e economicamente. Estamos preparados para assumir as responsabilidades que nos cabem no sistema internacional. Durante as últimas décadas, nos deixamos seduzir, sem perceber, por sistemas ideológicos de pensamento que não buscavam a verdade, mas o poder absoluto. A ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas. A ideologia invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família. Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica. O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem. A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu. E, com esses métodos, essa ideologia sempre deixou um rastro de morte, ignorância e miséria por onde passou. Sou prova viva disso. Fui covardemente esfaqueado por um militante de esquerda e só sobrevivi por um milagre de Deus. Mais uma vez agradeço a Deus pela minha vida.

(De novo, Bolsonaro usa o palco nobre da ONU para afagar sua base interna, ao falar de valores da família e promover sua guerra cultural. A agenda também já afeta a imagem do Brasil no exterior e acende um alerta, segundo Edison Lanza, relator da OEA para a liberdade de expressão.)

A ONU pode ajudar a derrotar o ambiente materialista e ideológico que compromete alguns princípios básicos da dignidade humana. Essa organização foi criada para promover a paz entre nações soberanas e o progresso social com liberdade, conforme o preâmbulo de sua Carta. Nas questões do clima, da democracia, dos direitos humanos, da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, e em tantas outras, tudo o que precisamos é isto: contemplar a verdade, seguindo João 8,32: “E conheceis a verdade, e a verdade vos libertarás”. Todos os nossos instrumentos, nacionais e internacionais, devem estar direcionados, em última instância, para esse objetivo. Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um “interesse global” abstrato. Esta não é a Organização do Interesse Global! É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer! Com humildade e confiante no poder libertador da verdade, estejam certos de que poderão contar com este novo Brasil que aqui apresento aos senhores e senhoras. Agradeço a todos pela graça e glória de Deus! Meu muito obrigado.

Bolsonaro encerra seu discurso em sintonia com Trump, que usaria o púlpito depois dele para dizer: “O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas”.

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