Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora –
A cruzada de Otavio Júnior para levar literatura ao conjunto de favelas do Rio, onde vive desde que nasceu. O trabalho agora tem o reconhecimento do Prêmio Jabuti, conquistado com a obra infantil “Da Minha Janela”
O Prêmio Jabuti de 2020 apostou em diversidade – e um dos eleitos, na categoria Infantil, foi Otávio Júnior, com o livro “Da Minha Janela” (Companhia das Letrinhas). Ele foi um dos 14 perfilados em “Guardiões da Alma Carioca”, livro lançado em 2019. Abaixo, o perfil dele:
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Era o verão de 1992 e o menino de 8 anos voltava da igreja com a mãe, Joana D’Arc, e a irmã mais nova, Jucilene. Discretamente, afastou-se delas em direção ao campo de futebol bem no meio do depósito de lixo do Morro do Caracol, no Complexo de Favelas da Penha, onde morava desde que nasceu. A bola rolaria logo. Mas para ele, o jogo seria outro.
Entre os rejeitos, avistou uma caixa de brinquedos e, ao gritar empolgado, atraiu outras crianças. Tudo bem – naquele caos, só estava interessado no livro Dom Gatón, o primeiro da coleção Peteleco. Pegou a publicação e deu meia-volta, a caminho de casa, para se enfeitiçar de vez pela literatura. Nascia o Livreiro do Alemão.
Otávio Cesar Santiago de Souza Júnior partiu ali numa viagem sem volta, a de levar cultura para populações distantes dela por um Brasil inteiro de razões. Criou, no Complexo do Alemão – segundo maior conjunto de favelas do Rio, com 13 comunidades pontilhadas de mazelas, onde viviam aproximadamente 80 mil pessoas em 2018 –, um projeto para inocular nas crianças o amor pela leitura. Pela cultura.
A partir do lixão onde encontrou seu livro essencial, Otávio Júnior multiplicou virtudes. Valorizou a favela como caudaloso polo produtor de cultura e provou que ali é possível virar o jogo. Ao escolher a contramão – largou o futebol pelos livros –, mostrou que outros destinos são possíveis.
O alumbramento com “Don Gáton” começou pelas ilustrações coloridas, a folia visual, até chegar à leitura, repetida incontáveis vezes, semente do que seria, para sempre, um consumidor voraz de livros. O hábito despertou nele a vocação pelas artes, ousadia entre os pobres do Brasil, escalados, desde 1500, para a vida braçal. Otávio quebrou a corrente, recusando-se a ceder. “Fui o primeiro da minha turma a possuir livros”, relembra. Virou frequentador da biblioteca do colégio – e, por consequência, acumulou as melhores notas de sua série. “Li todo o repertório infanto-juvenil, muita história em quadrinhos”, lista.
A opção pelas artes deixou seu pai reticente. Conhecedor de como a banda toca no andar de baixo, seu Otávio chegou a temer pelo futuro do filho tão estudioso, mas a mãe, Joana D’Arc, intercedeu com a sabedoria das mulheres. E, aos 14 anos, Otávio Júnior foi cursar teatro na Vila Olímpica da Mangueira.
“Nunca me cobraram trabalhar para ajudar em casa”, relata ele, que, ainda adolescente, começou a ser remunerado como arte-educador e destinava metade dos R$ 200 semanais às despesas domésticas. Mais adiante, ganhou bolsa para estudar roteiro e direção, dobrando a aposta no aprofundamento artístico. “Tive formação muito intensa para um jovem de 19 anos”, atesta ele, que passou por Casa da Gávea (iniciativa marcante, liderada pelo ator Paulo Betti), Laboratório de Cinema do Grupo Estação, Instituto da Televisão e Associação Brasileira de Autores Roteiristas. “Busquei entender as múltiplas linguagens, para trabalhar em prol do objeto livro”, recita.
Tudo muito bom, tudo muito bem – mas quem vai tão longe costuma esquecer, no mínimo se afastar das origens. Com o Livreiro, #sóquenão. “Nunca quis me distanciar daqui”, garante, resolvido. “Não tenho umbigo colado na Penha, mas sinto falta do meu bairro, minha gente, minha terra”. Assim, em 2006, fundou o Ler é 10 – Leia Favela, projeto para contar histórias e incentivar a leitura entre as crianças.
Estava longe de ser simples, num lugar atravessado, desde sempre, pela violência surrealista dos confrontos entre facções criminosas e das invasões policiais. Um cotidiano de abusos e mortes, tiros e correria, estresse e desilusão. Sufocada entre a brutalidade do tráfico e os abusos dos homens da lei, a população ainda padece com o descaso criminoso das autoridades, que não se interessam em levar até lá as mais elementares condições de cidadania.
(A entrevista para este livro foi dada num dia tristemente comum, com blindados do Exército bloqueando ruas e homens de roupa camuflada e armas de guerra apontando para todos os lados, em meio ao vaivém de crianças e trabalhadores. O shopping em frente à entrada principal do Alemão estava com portas semicerradas, no meio da tarde, e nós atravessamos até o outro lado da linha do trem, para Otávio poder contar sua história.)
Ele foi em frente e passou a realizar atividades por vários pontos do Complexo. Na luta para aproximar livros e pessoas, montava sessões gratuitas de cinema, com debates em seguida; convidava pequenos grupos pessoalmente, no máximo dez de cada vez, para que a concentração fosse a maior possível. O trabalho de formiguinha aumentou, até virar ocupação – cultural, a melhor que existe.
“Parecia que eu era o diferente, por fazer esse trabalho aqui”, admira-se ele, que levou um ano buscando patrocínio, até o Instituto Kinder do Brasil virar parceiro. O Ler é 10 – Leia Favela passou a ser itinerante, pelos Complexos da Penha e do Alemão, atraindo crianças de 2 a 12 anos e jovens de 15 a 18. Funcionava seis dias por semana, sempre com grande audiência. “Virou ocupação full-time”, orgulha-se Otávio, que sustentava o duelo com a vida real – vários adiamentos aconteciam devido às explosões da violência.
No livro “O Livreiro do Alemão” (2016), ele narra episódio dramático, vivido em 2007. Acabara de contar história a 25 crianças sentadas no chão de uma sala de aula no Espaço Ibiss, na Vila Cruzeiro (Complexo da Penha), e imperava o silêncio, com todos concentrados nos livros. De repente, ele ouviu um estampido ao longe – e logo seguiram-se outros, muitos, aterrorizantes. Minutos depois, veio o grito de fora: “Olha o caveirão!”, como as comunidades populares chamam o ameaçador blindado da PM. “Tive de interromper a leitura e levar as crianças para um local seguro”, recorda. “Nem deu tempo de recolher os livros”.
Aquele ano foi especialmente violento, mesmo para os altos padrões cariocas, a ponto de Otávio não conseguir mais viabilizar as reuniões de leitura. Os pais temiam deixar os filhos fora de casa, e por pouco o projeto não acabou. “Quem mora ali no morro sabe que há medo, angústia, desespero. Mas também há um desejo enorme de superação. Superar a violência, superar o preconceito, superar a falta de perspectivas. (…) Vejo homens armados por todos os lados, já tive amigos aliciados por criminosos, e uma bala perdida invadiu minha casa, deixando marca na parede em cima da minha cama”, relatou, no livro.
Confinado em casa por vários dias, sob a trilha sonora macabra dos tiroteios, sofreu, torturado pela angústia de ver sua construção tão preciosa bloqueada pela barbárie. Serviu, ao menos, para aumentar sua produção intelectual. “Escrevia, escrevia, escrevia para esquecer a tensão. Escrevia para não morrer sufocado”.
A demanda por cultura na favela, afinal, se consolidou pela ação determinada do Livreiro. Entre 2011 e 2015, Otávio Júnior manteve a Barracoteca, espaço de leitura no Morro do Caracol, fugindo do modelo itinerante, que as frequentes ocorrências no Complexo inviabilizaram. “Ainda me sinto um Dom Quixote”, ele cita personagem-ícone da literatura.
Na mesma época, iniciou, como pesquisador na área de educação, o projeto chamado Favela Lúdica. Autor contratado da Companhia das Letras, Otávio Júnior casou-se com Patrícia Pereira e, em 2008, nasceu João Victor. “É uma luta para ele ler”, lamenta. Ganhou o prêmio Faz Diferença, d’O Globo, e esteve na Feira do Livro de Frankfurt (a mais importante do mundo) e na do Livro Infantil de Bolonha.
Foi longe? “Não. Ainda falta muito”, avisa. “Quero trazer o melhor da tecnologia educacional para as crianças das comunidades”, planeja o Livreiro do Alemão, ele mesmo um personagem que parece saído das melhores histórias de herói.