O drama de ser gestante na ilha brasileira onde é proibido nascer

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Compartilhado do Site Genero e NúmeroCineasta Joana Nin conta em documentário que estreou esta semana na Globoplay como mulheres de Fernando de Noronha (PE) são penalizadas e têm direitos reprodutivos cerceados na ilha

Por Vitória Régia da Silva*




“Aqui é proibido nascer”, foi o que ouviu a diretora e produtora Joana Nin em uma visita turística ao arquipélago de Fernando Noronha (PE) em 2010. Em 2004, foi desativada a única maternidade na ilha, no Hospital São Lucas, sob a justificativa de que o custo de manutenção da estrutura era alto demais para o número de partos por ano. Por isso, as mulheres têm que se retirar da ilha na 28º semana de gestação para ir para Recife, capital pernambucana, onde devem ficar por três meses. Ela só retornam um mês após o parto.

Foi na tentativa de entender mais sobre essa proibição informal, já que não existe nenhuma legislação sobre o nascimento na região, que Nin anos depois voltou a Noronha para gravar um documentário. A diretora lançou esta semana “Proibido Nascer no Paraíso”, que acompanha o drama de três gestantes na ilha que não permite o nascimento de bebês desde 2004. O documentário está disponível no GloboPlay desde o dia 1º de maio.

Em entrevista à Gênero e Número, a diretora conta como o direito de escolha da mulher foi retirado e passado para o Estado, como a pandemia acentua esse cenário de violação dos direitos reprodutivos e fala sobre as disputas entre a saúde da mulher e interesses econômicos na ilha. “A moradora de Fernando de Noronha está sendo duramente penalizada porque é mais fácil levá-la para fora da ilha do que resolver o problema. A questão não é só a precariedade do hospital, mas a disputa de espaço em uma ilha com potencial turístico enorme e onde o nativo tem direito”, destaca.

Confira a entrevista completa

Como você entrou em contato com o tema e o que a motivou a fazer esse documentário?

Desde 2003 eu já estudava sobre gravidez e parto, com foco em ultrassom, então já tinha muito interesse nesse tema. Em 2010, eu fui para Fernando de Noronha em uma visita turística e, conversando com uma mulher da região, ela me contou que era proibido nascer lá. Eu acreditava que existisse nenhuma lei que proibisse nascer em qualquer lugar do Brasil, e de fato não há. Mas essa declaração me chamou atenção e, conversando com ela, entendi que não era uma lei, mas uma determinação informal de que as mulheres grávidas deveriam sair da ilha até a 28ª semana, com a justificativa de que não existia mais maternidade no local. Até 2004, havia uma sala de parto, mas nada além disso. Por isso, o governo decidiu retirar essas mulheres da ilha para o continente.

Ao mesmo tempo em que o arquipélago cresceu e a quantidade de turistas também, o hospital foi sendo precarizado, não só para as gestantes, mas para toda a população. A moradora de Fernando de Noronha está sendo duramente penalizada, porque é mais fácil levá-la para fora da ilha do que resolver o problema. A questão não é só a precariedade do hospital, mas a disputa de espaço em uma ilha com potencial turístico enorme e onde o nativo tem direito. Quem nasce na ilha ou mora lá há mais de dez anos é incluído na política  habitacional, que prevê que ninguém pode comprar um terreno ou uma casa no local, mas pode alugar, mediante solicitação ao Estado.

Será que o hospital precisava ser precário em um local que arrecada 30 milhões de reais por ano? Ou ele não é equipado por que existe um temor de que as mulheres queiram ficar? Eu não consegui responder essas perguntas, mas me questiono isso todos os dias. Em vez de resolver esse problema, a mulher é penalizada.

A mulher de Fernando de Noronha está sendo duramente penalizada, porque é mais fácil levá-la para fora da ilha do que resolver o problema.

Como funciona o processo de deslocamento da gestante na ilha?

A gestante tem que sair com até 28º semanas e retorna a ilha um mês após o parto. Sair com sete meses significa deixar o trabalho, deixar seus filhos e perder parte da licença maternidade. As gestantes têm que viajar e ficar em um hotel, com um tratamento fora de domicílio que é custeado pelo Estado. Elas têm direito a um acompanhante, mas a questão é: qual marido vai ficar três meses sem trabalhar? Elas acabam ficando sozinhas nesse momento do parto.

O SUS paga a passagem e o Estado paga o hotel em Recife, onde elas também têm direito à alimentação. Só que elas não têm a opção de ficar em casa e ter seu filho no lugar em que moram. O documentário foi gravado pré-covid, de maio de 2017 a março de 2019.

No Dia das Mães de 2020, em plena pandemia, a ilha estava fechada para turismo e uma gestante decidiu ficar lá, com medo do contágio do coronavírus. Ela foi retirada da ilha à força por uma liminar, em um voo fretado. O Estado tornou essa mulher ré em uma ação, acusada de intransigência. Mas o Estado negou uma assistência que deveria ser oferecida a ela.

Harlene, Ione e Babalu, foram as personagens do documentário que acompanha a jornada das gestantes que tiveram que se deslocar para o continente para realizarem seus partos |Foto: Divugação
Harlene, Ione e Babalu foram as personagens do documentário que acompanha a jornada das gestantes que tiveram que se deslocar para o continente para realizarem seus partos | Foto: Divulgação

Qual a importância de lançar o documentário nesse momento da pandemia de covid?

A pandemia veio mostrar que o argumento do governo de que está protegendo as mulheres cai por terra. Eles dizem que tirá-las da ilha é proteger, porque lá não tem esse serviço, mas durante a gravação fomos ao Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira – (IMIP) em Recife, lugar para onde mandam as gestantes. Estava superlotado. Vimos partos no corredor do hospital. As gestantes que acompanhamos não puderem fazer o parto lá por isso. Coube a elas buscar outro hospital.

Imagina como está esse cenário com a covid? Eles perderam uma oportunidade enorme na pandemia de equipar o hospital do arquipélago. Poderiam ter feito uma emergência, não só para partos.

O meu alerta é que a mulher está sendo penalizada por uma situação que não está sendo encarada da devida forma. E outro ponto é que Fernando de Noronha é a única ilha oceânica habitável do Brasil, que recebia mais de 100 mil turistas por ano antes da pandemia. Não é razoável que esse lugar não tenha um hospital decente que possa atender emergências, que não tenha um centro cirúrgico, um banco de sangue e um anestesista. Se o Hospital São Lucas tivesse isso, poderia fazer um parto normal que tivesse algum problema ou qualquer outra emergência, mas atualmente não é possível.

Esse problema não é só de Noronha. Temos outros municípios que não têm maternidade, porque são pequenos. Não se busca meio-termo. Ninguém olha para a questão social, e as mulheres estão sendo privadas da sua vida, família, e dignidade para ter um filho.

Não estamos brigando para que Noronha tenha uma maternidade, mas que tenha um atendimento de serviço de emergência melhor que possa socorrer toda a população, inclusive as grávidas. E que as mulheres tenham informação e opção.

Conforme o tempo vai passando, essa situação vai sendo consolidada, a comunidade acha que não é possível mudar e se sente impotente. E se você depende do governo para fazer tudo na ilha, bater de frente com os administradores pode ter consequências para outras questões da vida.

Diretora e produtora há 20 anos, Joana Ninl ança eu segundo longa, Proibido Nascer no Paraíso, sobre parto e direito de escolha da mulher | Foto: Divulgação
Diretora e produtora há 20 anos, Joana Nin lança seu segundo longa, “Proibido Nascer no Paraíso”, sobre parto e direito de escolha da mulher | Foto: Divulgação

Para quem não entende a importância desse debate, pode explicar por que a mulher deve ter esse poder de decisão?

Essa é uma luta coletiva pelo nosso direito de escolha e pela nossa vida. É só pensar na nossa mãe, em por que nascemos em determinado lugar. Imagina sua mãe ser obrigada a viajar 500 Km para ter você, longe de casa, e ter que ficar três meses em outro lugar, deixando tudo para trás, até mesmo seus irmãos. Algumas mulheres tiram os outros filhos da escola para matriculá-los em Recife, e depois têm que rematriculá-los na ilha. Tudo isso tem impacto. Além disso, se a mulher quiser ficar com seus outros filhos em Recife, tem que pagar a passagem do próprio bolso. Isso não faz sentido. Não estamos falando do interior do país, mas de uma ilha turística que tem dinheiro para resolver essa questão.

Se a mulher quiser ficar com seus outros filhos em Recife, tem que pagar a passagem do próprio bolso. Isso não faz sentido. Não estamos falando do interior do país, mas de uma ilha turística que tem dinheiro para resolver essa questão

 Qual seria a solução?

Parte da solução do problema está na união das mulheres. As moradoras querem ter filhos lá, mas não querem que as mulheres de fora tenham seus filhos na ilha, para não concorrer com os direitos delas sobre a terra. Já a população local não apoia as mulheres, acha que elas são “loucas” por tentar ter seus filhos na ilha.  Só que na verdade, quem concorre com elas são os gigantes do turismo que estão ocupando espaços. Para elas não é dada a opção.

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

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