O drama dos refugiados climáticos

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Passagem de furacões força deslocamento de milhares e evidencia vácuo jurídico para atender quem deixa tudo para trás devido a ação da natureza

Uma das muitas ruas inundadas no Haiti depois da passagem do furacão Irma. Foto Hector Retamal/AFP
Uma das muitas ruas inundadas no Haiti depois da passagem do furacão Irma. Foto Hector Retamal/AFP

A população de ilhas da América Central e de parte da Flórida, nos Estados Unidos, enfrenta neste momento o rescaldo da passagem destruidora do furacão Irma e de outras duas tempestades tropicais, Jose e Katia. Mas além do estrago e das vidas levadas pela força dos ventos, esses fenômenos trouxeram à luz uma realidade que será mais frequente, acompanhada de um imbróglio jurídico: a existência dos refugiados climáticos e a falta de políticas internacionais para ajuda humanitária a quem migrou pela ação da natureza.

É preciso adotar um novo marco com obrigações, procedimentos, direitos e deveres de países por quem está emigrando devido aos desastres naturais. Os países têm essa consciência, mas talvez seja uma questão de prioridade

Luiz Fernando Godinho
Porta-voz do Acnur Brasil

O Irma, o furacão mais potente já registrado no Oceano Atlântico, obrigou o deslocamento em massa de moradores de localidades como São Martinho, território administrado pelos governos da Holanda e da França, e das Ilhas Virgens Britânicas. A todo o momento, cargueiros militares removem sobreviventes para áreas seguras fora dali, como Porto Rico, nos EUA.

Apesar de cada país promover ações independentes pelas vítimas, não há um protocolo internacional desenhado pelas Nações Unidas que assegure assistência humanitária a esta categoria de refugiados. Há um limbo jurídico e uma situação considerada frágil, já que a ajuda temporária poderia se transformar, posteriormente, em deportações em série dos que chegaram após a fúria da natureza.




A própria Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), guardiã da convenção que protege refugiados e deslocados internos, reconhece esta falha global e vê uma falta de interesse dos países em colocar em prática esta nova política.

O furacão Irma visto do espaço. Foto NASA
O furacão Irma visto do espaço. Foto NASA

“Defendemos a construção desse marco jurídico sem a necessidade de reabrir a discussão sobre a convenção de 1951 [que protege quem deixa seu local de origem devido a guerras ou perseguições]. Mesmo reconhecendo que há esta falha, não se trata de reabrir a discussão desta convenção. É preciso adotar um novo marco com obrigações, procedimentos, direitos e deveres de países por quem está emigrando devido aos desastres naturais”, afirma Luiz Fernando Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil. “Os países têm essa consciência, mas talvez seja uma questão de prioridade”, complementa.

Há um temor de que, ao se tentar implementar novas categorias de refugiados na atual convenção da ONU, o acordo já existente seja enfraquecido devido às atuais políticas extremistas – muitas vezes xenófobas – contra refugiados. Por isso seria preciso discutir um instrumento tão forte, do ponto de vista legal, quanto o já existente.

Se aumentamos a temperatura da superfície do mar, aumentamos a temperatura do ar e a estabilidade da atmosfera, é muito claro que teremos mais e mais fortes furacões, como está acontecendo. O sistema climático está fora do equilíbrio como conhecemos ao longo dos últimos 100 anos

Paulo Artaxo
Membro do IPCC

Uma nova realidade

Enquanto isso, por ano, 25 milhões de pessoas afetadas por problemas ambientais graves como degelo, inundações, tempestades tropicais, incêndios, temperaturas extremas ficam sem ampla proteção, segundo o Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC, na sigla em inglês).

Um número que pode aumentar. Para Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC), não há dúvidas de que estamos observando um aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos por causa de uma maior emissão de gases de efeito estufa. Mesmo assim, segundo ele, não há uma abordagem consistente para lidar com os refugiados climáticos. “Ilhas do Pacífico deixarão de existir em algumas décadas, e a população terá que ser removida e alocada em outras áreas do planeta. Regiões semiáridas se tornarão desertos com necessidade de mobilização de milhares de pessoas. Mesmo assim, não há ainda uma política aceita para lidar com esta importante e urgente questão socioeconômica”, explica.

Ele comenta que é difícil fazer previsões de novos furacões como o Irma ainda para este ano, porém, ressalta que a temperatura média da água no Atlântico tropical está 4 graus acima da média, o que possibilita tempestades tão potentes como a registrada.

“Se aumentamos a temperatura da superfície do mar, aumentamos a temperatura do ar e a estabilidade da atmosfera, é muito claro que teremos mais e mais fortes furacões, como está acontecendo. O sistema climático está fora do equilíbrio como conhecemos ao longo dos últimos 100 anos”.

Imagem da ilha de São Martinho após a passagem do furacão. Foto Gerben Van Es/Ministério da Defesa da Holanda
Imagem da ilha de São Martinho após a passagem do furacão. Foto Gerben Van Es/Ministério da Defesa da Holanda

Plano de ação contra catástrofes

Mas é preciso ressaltar que nem sempre uma ameaça natural vai se tornar um desastre, o que influencia na existência de refugiados climáticos. Para Erika Pires Ramos, fundadora da Rede Sul-americana para as migrações ambientais, ações coordenadas por países e cidades antes de ocorrências naturais possivelmente catastróficas evitariam deslocamentos forçados e mortes.

Para ela, a baixa capacidade de preparação de um Estado, com a falta de um sistema de alerta precoce ou plano de retirada, é um fator importante para a resiliência e adaptação dessa população, explica. Ela compara as ações feitas na Flórida, nos EUA, com outras áreas da América Central atingidas pelos recentes furacões.

“Nos Estados Unidos, o que a gente viu foi um alto investimento em sistemas de alerta precoce. Em Miami fizeram uma retirada massiva antes de o furacão chegar, inclusive pela terra e pelo ar”, afirma. “Cuba também é uma das referências em resposta a desastres e serve de exemplo para outros países. Mas no caso das pequenas ilhas, foi notória a existência de casas mais frágeis e escassez de abrigos de emergência. A pobreza foi um fator importante na resiliência e adaptação dessa população”, complementa Érika.

Mesmo com o assunto “refugiado climático” tendo sido abordado em diversos acordos globais, como o tratado climático de Paris, é urgente a criação de um regime internacional que assegure direitos de pessoas vulneráveis à ação climática. É também importante para dar suporte a Estados afetados por desastres, que desestabilizam a capacidade de resposta, já que as instituições e governos ficam mais frágeis.

“Estamos testemunhando a formatação desta moldura legal para acolher esta questão. É um processo que está em construção e toma um tempo. Mas a ausência dele também não tem impedido os países de responder. Há claramente pessoas que se deslocaram [devido a desastres naturais] e precisam de assistência e proteção tão ágeis quanto às ações feitas a quem foge de um conflito”, finaliza Godinho, do Acnur.

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