Por Eugênia Gonzaga para o Jornal GGN –
Este foi o tema da redação do Enem de 2017. Imagino que tenha sido muito difícil para os candidatos porque o universo das pessoas com deficiência ainda está bem longe de fazer parte do quotidiano das turmas que estão prestando vestibular.
No tocante à formação educacional de surdos, a questão é ainda mais delicada, pois há movimentos em defesa do seu ensino segregado, apesar disso ser inconstitucional, de dificultar a sua formação e de aumentar a distância entre alunos com e sem deficiência.
A defesa do ensino segregado surge pela falta de acesso da população surda a qualquer tipo de ensino. Aliás, essa população possui um longo histórico de violação a seus direitos humanos. No passado, para que pudessem aprender a falar, chegavam a ter as mãos amarradas de modo que não se utilizassem de sinais. Isto era uma violência pois a Língua de Sinais, hoje oficializada no Brasil (Libras), é a maneira natural – e primeira forma – de comunicação para as pessoas surdas.
Surge então uma forte campanha em outro extremo: contra a oralização. Para adeptos dessa ideia, as pessoas surdas compõem uma comunidade à parte, com uma cultura própria, calcada basicamente na Língua de Sinais e no ensino segregado, em escolas especiais. Os pais de bebês surdos passaram a ser desincentivados a procurar terapias nas áreas de fonoaudiologia e outras que pudessem contribuir para o desenvolvimento da fala e o uso de aparelhos ou implantes cocleares era execrado.
A defesa dessa “cultura surda” chegou ao ponto de casais surdos quererem fazer seleção genética de seus bebês para que também nascessem surdos (https://motherboard.vice.com/pt_br/article/wnze89/por-que-alguns-casais-escolhem-ter-filhos-surdos).
Temos visto, atualmente, um cenário mais razoável. As famílias cujos bebês têm a surdez diagnosticada contam com acesso a implantes cocleares e terapias de estimulação precoce, mas o uso da Língua de Sinais também é incentivado e a criança surda vai aprendendo a se utilizar dessa Língua e de modos variados para se comunicar.
A Convenção da ONU sobre direitos de pessoas com deficiência, de 2006, ratificada no Brasil com estatura de norma constitucional e a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015, dispõem que o seu ensino deve ser inclusivo, garantido-se: a) aprendizado da língua de sinais; b) promoção da identidade lingüística; c) que sua educação seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados a cada indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.
Trata-se de uma disposição de difícil cumprimento, mas não é uma tarefa impossível e são as escolas precisam enfrentá-la. Como disse o Ministro Edson Fachin, nos autos da ação direta de inconstitucionalidade n. 5357, a inclusão educacional é um direito dos alunos com e sem deficiência, sendo que a escola não pode privar nenhum deles “da construção diária de uma sociedade inclusiva e acolhedora, transmudando-se em verdadeiro local de exclusão, ao arrepio da ordem constitucional vigente”. Para ele, “à escola não é dado escolher, segregar, separar, mas é seu dever ensinar, incluir, conviver”.
Em documento que escrevi em 2004, juntamente com a promotora Luiza de Marilac Pantoja e a professora Maria Teresa Egler Mantoan, já abordávamos o tema com as maneiras pelas quais uma escola comum pode receber, com qualidade, alunos com e sem deficiência (http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/pesso… ). Por isso, podemos afirmar que muitas escolas e redes de ensino já promovem o ensino de pessoas surdas em escolas comuns, com todos os apoios e garantias acima mencionadas e, portanto, sem discriminação. Mas é preciso uma decisão firme por parte de seus dirigentes no sentido de pararem de optar por excluir alunos sob o argumento de não estarem preparadas.
Como visto, o desafio da formação educacional de surdos, assim como de todas as nossas crianças, com ou sem deficiência, está a cargo do poder público e das escolas, públicas ou privadas. Não são mais as crianças surdas que precisam se adaptar, de negar a sua identidade ou serem convencidas a viver em uma comunidade separada, mas as escolas que precisam se modificar para acolhê-las e não mais discriminá-las.
Eugênia Gonzaga é Procuradora Regional da República e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
Curta nossa página no Facebook e acompanhe as principais notícias do dia