Amiga do blog, a historiadora Liane Rossi escreveu a respeito deste mesmo escabroso assunto protagonizado pela rede de supermercados de São Paulo:
“Tenho muita vergonha alheia de, em dezembro de 2017, aos 55 anos, ter que protestar em frente à uma rede de supermercados que se deu ao direito de dizer como deve ser uma família, onde colocar os desejos e, mais antiga das lutas, o lugar da mulher na sociedade.
Eu deveria, depois de décadas de luta, estar descansando sobre os louros da justiça social e histórica, mas não, pelo visto, vou morrer brigando. Tenho muita vergonha de estar vivendo isso. Vergonha alheia, que fique bem claro.
Todos os dias da minha vida as liberdades, todas, a justiça social e tudo de bom que advém daí foram desafios cotidianos. Enquanto houver luta, lutaremos.”
Por Matê da Luz, publicado em Jornal GGN –
2017 segue caracterizado com um ano bizarro. Dentre as exposições e posicionamentos mais esquisitos e retrógrados, aos meus olhos, estão aqueles que se vangloriam de excluir, em qualquer âmbito ou aspecto. Como é que pode, em pleno século XXI, esta ser uma política considerável?
“Mas querida, os políticos excluíram o Brasil de seus planos, onde apenas impera o próprio bolso e bom viver” – sim, mas onde é que estão as balizas internas, aquelas que dão conta de cada um de nós quando o contexto surta e fica assim, em pane? Não consigo mais entender ou aceitar a justificativa de que as pessoas agem de tal forma porque o Brasil isso, porque o Brasil aquilo – insisto em questionar onde é que estamos com a cabeça quando nos deixamos dominar sem filtro por essa onda de desastres em pensamento-ação que anda escorrendo país afora; onde está nossa força pra não nos submetermos e irmos à luta, mesmo que seja de forma simples, cotidiana?
Exemplo desta semana: a rede de supermercados HIrota Food imprime e distribui uma cartilha com barbáries “tendo como base o eixo cultural HIrota: fé, família, escola e trabalho”. Até aí, vamos lá, tudo bem. O que há de errado em falar em família, fé, escola e trabalho, não é mesmo? Também creio que estes sejam pilares importantes, desde que cada um possa escolher a forma de exercer e exercitar os seus. Daí que no interior da peça, o desastre aparece: “Deus insitituiu o casamento e estabeleceu critérios sólidos para seu funcionamento […] primeiro, o casamento é heterossexual. O casamento é a união entre um homem e uma mulher, entre um macho e uma fêmea. O casamento homoafetivo está na contramão do propósito divino […]” e ainda “O sexo é uma bênção que deve ser usufruída apenas no contexto sacrossanto do matrimônio”.
Olha, não nem sei por onde começar. São tantas as perguntas que pairam na minha cabeça mas a principal delas é: não tinha uma alma na equipe inteira pra alertar que seria impressionantemente ruim o resultado dessa publicação? Porque, oras, o dono do supermercado ser um fascista homofóbico, vá lá, cada um tem o direito de estar onde bem entende na reta da evolução, não é mesmo? Mas publicar isso como eixo cultural de uma empresa, quer dizer, comprometer centenas de funcionários com este discurso bizarro e retrógrado assim, sem questionamentos internos? Entendo que o país esteja em crise, mas ninguém previa o estrago que a publicação causaria?
Ou pior, como comentou amiga minha, será que somos nós, os abismados, que estamos achando tudo isso muito anormal enquanto os que pensam dessa forma estão simplesmente ganhando espaço, se sentindo livres e sequer sentirão uma coceirinha no bolso, porque assim como o Hirota, muitas famílias pensam isso e estão a aguardar o ato heróico de uma empresa grande assumindo, de uma forma ou de outra, que o mundo está muito louco mesmo com essa gente que beija pessoas do mesmo sexo. Medo, medo, medo. Respiro. Ainda com medo.
Minha mãe mora num prédio que fica literalmente em cima de uma das unidades do Hirota e, quando conversei com ela sobre o ocorrido, ela disse que “não tem como mudar a rotina, porque o outro mercado é longe e ela não tem mais idade pra isso”. Espero, de coração, que ela reveja seu conceito de participação e contribuição econômica e social e, mais ainda, espero que a gente não se esqueça dessas e de outras que vem aparecendo por aí. Ser livre há de ser igual para todos, a regrinha infantil que dá conta de que seu limite acaba onde começa o meu deixa isso tão, mas tão claro, que não sei de onde alguém tirou que imprimir uma opinião regressa e miúda como essa fosse ser “apenas expressão de suas opiniões”.
Que o boicote prometido nas redes soaicis seja cada vez mais físico, amém.