Quem não é carioca talvez não saiba, mas a Rua Joaquim Silva – uma via que começa em frente a Praça Paris, quase Glória, e termina nos Arcos da Lapa – é o endereço de um dos pontos do Rio de Janeiro mais visitados pelos turistas. Obra de arte a céu aberto, a Escadaria Selarón e seus 215 degraus cobertos de azulejos rivalizam em atrair visitantes com o Cristo Redentor, a Floresta da Tijuca e o Pão de Açúcar: o cenário colorido e fotogênico é irresistível nesses tempos de selfies e Instagram. O sobe e desce pelos degraus – que ligam a Lapa a Santa Teresa (ou vice-versa) – não pára: chegam gringos em bando a qualquer hora do dia, jovens. locais e visitantes, estacionam quando a noite começa.
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Foi neste turístico local que agentes da insegurança pública do Rio – no caso, policiais civis – resolveram dar uma meia-dúzia de tiros no fim da tarde de segunda-feira, dia 18. Mataram um cidadão carioca desarmado – Emanuel Ramos de Oliveira, jovem (20 anos) e negro – e causaram um pandemônio na vizinhança. Turistas correram; a Selarón esvaziou; moradores protestaram; bares e restaurantes fecharam as portas; hotéis orientaram seus hóspedes a permanecerem trancados em seus quartos. A Rua Joaquim Silva tem tudo isso: residências, restaurantes para gostos variados, botequins raiz, hotéis modestos. A Lapa viveu horas de terror e medo e, durante toda a noite, permaneceu ocupada por policiais.
A Polícia Civil, oficialmente, informou que os seus revidaram a tiros a um ataque igualmente a tiros vindo de um casarão vizinho ao Arcos da Lapa: sim, os agentes da insegurança pública escolheram a vizinhança de outro ponto turístico da cidade para mandar bala. A polícia do Rio de Janeiro não é boa de explicações. Emanuel estava com uma arma de brinquedo; ou seja, não poderia ter atirado nos agentes da insegurança pública que, de acordo com a explicação oficial, estavam na Lapa para cumprir um mandado de prisão. Só acreditarei nesta versão se for informado contra quem era o mandado e quem foi o juiz que o expediu. Como essa explicação até agora não veio, permito-me achar altamente duvidoso que policiais estivessem a caminho, num fim de tarde, de cumprir um mandado de prisão contra quem quer que seja.
Até quem não é carioca sabe que a Lapa tem uma longa tradição de boemia, que remonta às primeiras décadas do século passado, quando ali foram se estabelecendo hotéis, cassinos, cabarés e bares. Esses lugares atraíam variada clientela; e também prestadores de serviço para essa clientela: ambulantes, prostitutas, vendedores de drogas. O movimento começou a declinar durante a ditadura do Estado Novo e o bairro entrou numa fase de decadência e degradação na década de 1960, com a chegada de outra ditadura. Mas o indomável espírito boêmio da Lapa permanecia vivo: reapareceu com a chegada do Circo Voador, já nos anos 80, ganhou força com a organização de comerciantes do Rio Antigo e retomou a vibração com as casas de samba já na última década do século 20.
O Século 21 encontrou a Lapa bem viva e animada, com aglomerações, principalmente de jovens, a cada fim de semana, madrugadas adentro. Tem muito samba, muito choro e rock & roll. Também encontrou a escadaria já coberta pelos azulejos pintados ou recolhidos pelo chileno Jorge Selarón, que chegou ao Rio em 1990, apaixonou-se pela cidade e fixou residência na Rua Manoel Carneiro, a então insípida rua com 215 degraus, ligando a Joaquim Silva a Santa Teresa. A escadaria ficou famosa, virou cenário até de clipe da banda U 2, ganhou o nome de seu criador e entrou no roteiro turístico da cidade – um roteiro capaz de somar, a pouca distância, o Aqueduto da Carioca (nome – e função – original da construção elevada na Lapa), inaugurado em 1750, à instalação de azulejos do chileno Selarón.
Desde o começo de seu sucesso, lá se vão 100 anos, essa boemia da Lapa é uma dor de cabeça para as forças policiais, incumbidas de manter a ordem. Reina, por ali, uma certa desordem que alimenta sua alma boêmia. Infelizmente, como também muitos sabem, há muitos agentes da insegurança pública – talvez sejam maioria – nas polícias do Rio, que não são boas nem de explicação, nem de prevenção ao crime, menos ainda de investigação. Após o homicídio de segunda-feira, informou-se que a vítima tinha 15 “anotações criminais” por delitos como roubo e venda de drogas – o termo “anotações criminais” significa que nossos agentes de insegurança pública nunca foram capazes de concluir um inquérito e levar à Justiça o jovem negro baleado e morto ao lado dos Arcos, a menos de 200 metros da Escadaria Selarón.
A boemia da Lapa não se deixa abater facilmente. Os botecos da Joaquim Silva resistiram e até se multiplicaram durante a pandemia – a rua começa num botequim, o Bico de Ouro, e termina no restaurante Sabor Peruano. No caminho até os Arcos da Lapa, é preciso passar pelo Bar do Adauto, pelo restaurante ,Ximeninho, pelo Bar da Irene, pelo Baby Galeto, pelo Cantinho da Verinha, pelo Bar do Antônio – é uma variedade de pontos de venda de bebida (em alguns casos, também de comida) que inclui meia-dúzia de barracas de ambulantes ao redor da Selarón. Para mostrar a força da Lapa boêmia, em plena pandemia, foram abertos na Joaquim Silva o bar e restaurante Boteco do Seu França – do escritor e diretor Rodrigo França – e o vegano Bandolim, estabelecido num sobrado onde morou o virtuose Jacob do Bandolim, Vieram fazer companhia ao japonês Gohan e ao brasileiríssimo Cortiço Carioca, em outro sobrado reformado e conservado.
Não passava na rua há quase três anos: na anterior, em 2019, acompanhei colegas jornalistas estrangeiros até a Escadaria Selarón para tomar uma cerveja e ver o movimento. Voltei, na sexta passada, quatro dias depois dos tiros: escadaria lotada, turistas fotografando, movimento na rua, na calçada, nos degraus, nos bares e restaurantes. Reinava a paz, energia da Lapa e aquela certa desordem: são sinais vitais para a cidade.
Mas, enquanto a Lapa curava a ferida, os agentes da insegurança pública, desta vez policiais militares, terminavam a semana levando terror e medo ao Complexo de Favelas do Alemão. Foram 18 mortes: morreram duas mulheres (uma a caminho da igreja, outra a caminho do trabalho), morreu um policial militar, e morreram outros 15 homens – quase todos jovens, quase todos negros, todos classificados como “suspeitos” pelos porta-vozes dos agentes de insegurança pública, que, hoje, são os maiores inimigos do Rio. A cidade também morre um pouco a cada manhã com estúpidas operações policiais, que resultam, invariavelmente, em famílias acordadas por tiros, em crianças apavoradas, em escolas e postos de saúde fechados e em morte.