Por Gilberto Giusepone, Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber –
“A tolerância religiosa exige o Estado laico” (John Locke)
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir que escolas públicas abram espaço para o ensino confessional, ou seja, para aulas de religião de um único credo, representa um grande retrocesso político. Trata-se de um acinte ao conceito de laicidade republicana, pelo qual o Estado deve se manter neutro e independente de quaisquer igrejas de modo a garantir plenamente a liberdade religiosa dos cidadãos.
Esse conflito não é novo no Brasil. Depois de viver como Estado confessional durante todo o Império, o advento da República e o predomínio dos positivistas separou formalmente Estado e Igreja na Constituição de 1891. Mas a Constituição de 1934, apesar de manter o Estado laico, deu maior abertura à colaboração com a Igreja Católica.
Esse processo se reproduziu nas demais Constituições do Brasil, com reflexos diretos na questão da Educação. Veja-se, por exemplo, a longa tramitação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, um debate que se estendeu de 1948 a 1961.
A mesma questão foi colocada nas discussões que deram origem à Carta de 1988. Como notaram vários juristas, nossa Constituição Cidadã proíbe que o Estado estabeleça relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas – a não ser que esse tipo de colaboração seja “de interesse público”. Essa brecha propiciou o reaparecimento do tema no debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/1996 e a situação que levou o julgamento no Supremo.
Em todos os casos, os defensores da laicidade insistiram na necessidade de se preservar a imensa diversidade cultural brasileira, na qual a pluralidade religiosa é um dos aspectos. Em vez de ampliar o leque para compreender as contribuições das religiões professadas no país, a introdução de aulas de uma confissão específica ameaça essa pluralidade cultural ao naturalizar uma determinada opção como a única possível. O fato de esta opção poder variar – hoje o catolicismo; amanhã o neopentecostalismo – não elimina o problema.
Mais grave, o ensino religioso em escolas públicas pode facilitar a violação aos direitos e das liberdades fundamentais, bem como ser um obstáculo à implementação de diretrizes educacionais obrigatórias, como o ensino da cultura afro-brasileira e a discussão sobre diversidade sexual e de gênero.
Os defensores do ensino religioso específico esgrimem argumentos curiosos. Entre eles, o de uma suposta intolerância do Estado laico contra as confissões religiosas em geral. Mas é justamente do contrário que se trata: numa época marcada pelo fundamentalismo religioso, o Estado deve garantir o respeito a todas as crenças justamente para defender a liberdade de crença. E a laicidade do Estado não significa que este seja ateu, apenas que não se identifica nem incentiva nenhum dos credos praticados no país. E, como bem lembrou Frei Beto, um Estado ateu, em última instância, não deixa de ser um Estado confessional, na medida em que busca se legitimidade em um determinado credo.
Ao contrário do que professam os inimigos da laicidade, o ensino religioso não propicia, necessariamente, imunidade contra a intolerância. Sobram exemplos, no passado e no presente e em várias confissões, do uso da religião como justificativa de guerras, massacres e até de “limpeza ética”.
Portanto, a única maneira de garantir valores democráticos, como tolerância e diversidade, é separar o interesse público, representado pelo Estado, dos interesses particulares das várias confissões religiosas.
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