Por Alberto Villas, Carta Capital –
O meu amigo exilado não costumava falar muito do seu passado
O meu amigo exilado morava num minúsculo apartamento na Rue Daubenton, no quinto quarteirão de Paris. O apartamento, na verdade, era uma quitinete que ficava no quarto andar de um prédio sem elevador onde, da janela, com muito esforço, víamos as copas das árvores do Jardin des Plantes. Verdes no verão, amarelas no outono, secas no inverno.
Eu ia lá de tempos em tempos levar números atrasados do jornal Movimento, o encalhe da Livraria Portuguesa e Brasileira. Quando ele abria a porta, dávamos de cara com um pôster cubano, vermelho e negro, dependurado na parede, sempre meio torto. Era um desenho do comandante Fidel Castro e uma data: 26 de julio.
O chão da sala do apartamento era forrado com um carpete cinza claro surrado e, jogado por cima dele, pequenos tapetinhos de fuxico, acho que para esquentar o ambiente, já que o aquecimento não era central, vinha de um aquecedor a gás, que só era ligado no auge do inverno.
Bem abaixo do pôster, uma estante feita com três tábuas grandes e empenadas, e alguns tijolos de suporte. Nela, muitos livros, alguns pesados, quase todos marxistas. Na prateleira de cima, uma pilha de revistas Planeta, dois livros do Ignácio de Loyola Brandão – Zero e Dentes ao Sol – e um porta-retratos com uma fotografia em preto e branco de um casal dançando no Cassino da Urca, seus pais.
Em cima da estante, havia também incensos numa caixinha de madeira, tickets de metro usados numa latinha prateada, um pote indiano cheio de moedas de franco e uma pasta de plástico transparente estufada de envelopes verde amarelos.
No chão, um abajur e um tatame entre dois banquinhos de madeira. Na cozinha, um festival de pratos, copos, talheres e xícaras, cada um de um modelo, uma cor, um tamanho, todos herdados de brasileiros que por ali passaram. Nenhum utensílio fazia par com o outro.
Na janela do quarto, para esconder a claridade dos dias de verão, o objeto mais caro da casa, uma cortina branca, tipo persiana, comprada na Habitat, uma espécie de Tok & Stokde lá.
Não havia cama no quarto, já que o meu amigo exilado dormia no tatame, na sala. Havia apenas uma escrivaninha de madeira maciça que, segundo ele, fazia parte da casa desde os anos 60, nunca havia saído dali. A escrivaninha estava sempre cheia de papeis, recortes de jornais, bilhetes e fichas de cartolina. Uma miniatura do Tintin, de porcelana, segurava um amontoado de apostilas da Faculdade que ele tentava fazer, a Censier.
No canto, ao lado da escrivaninha, uma caixa de papelão, com alguns discos de vinil, gastos pelo tempo. Toda vez que ia visitar o meu amigo exilado, dava uma espiada naqueles discos, mas nunca havia novidade, eram sempre os mesmos. Construção, de Chico Buarque, Lances de Agora, de Chico Maranhão, Das terras do Benvirá, de Geraldo Vandré, um disco do Edu Lobo com Maria Bethânia, o Rubber Soul, dos Beatles, dois discos do Yes, o Axis: Bold as Love, do Jimi Hendrix e um disco do Manduka, filho do poeta Thiago de Mello.
Sempre que me via vasculhando aquela caixa de vinis, o meu amigo exilado retirava da capa o tal Manduka e colocava pra rodar na vitrola, uma Phillips três em um, com um som sofrível.
Se é pra dizer adeus
Pra não te ver jamais
Eu, que dos filhos teus
Fui te querer demais
No verso que hoje chora
Pra te fazer capaz
Da dor que me devora
Quero dizer-te mais
Que além de adeus agora
Eu te prometo em paz
Levar comigo afora
O amor demais
Ele adorava essa música, uma parceria de Manduka com Vandré, que acabou virando o hino do seu exílio.
O meu amigo exilado não costumava falar muito do seu passado. Sabia que viera de uma família pobre do sertão de Pernambuco. Uma vez, me contou que na casa dos seus tios, comia-se calango em tempos de vacas magras.
Os exemplares do Movimento que levava pra ele, iam se empilhando num cantinho do banheiro que hoje, calculando bem, imagino que deveria ter, no máximo, dois metros por dois. Mas mesmo assim eles cabiam ali, empilhados ao lado do vaso sanitário.
Fui inúmeras vezes nesse apartamento da Rue Daubenton e todas essas vezes, ele me serviu um Nescafé bem forte, numa xícara de porcelana branca com um pires marrom. Adoçava com duas pedrinhas de açúcar e passávamos horas ali tomando Nescafé, comendo biscoitinhos LU e conversando sobre política, Brasil e futebol. Ele se queixava sempre de não ter noticias do seu Santa Cruz e eu ficava ali boiando, sem sequer saber a cor da camisa do seu time do coração, o terror do nordeste.
No dia em que eu vim-me embora, fui lá me despedir dele. Entreguei o último pacote de Movimento, tomei uma xícara de Nescafé e ouvi pela última vez, a canção Pátria amada idolatrada salve salve.