Por Ítalo Rocha Leitão, jornalista
“Paris, primavera de 1965. Miguel Arraes caminha pelas ruas da capital francesa à procura de um endereço onde um amigo brasileiro estava hospedado na casa de uma família chilena e o esperava para lhe entregar um presente. Fazia pouco mais de um ano que Arraes tinha sido deposto do Governo de Pernambuco pelo golpe militar de 64. Na Rue l’Ancienne Comedie, nº 88, no Quartier Latin, bairro boêmio frequentado pela intelectualidade parisiense, Arraes encontrou o número que procurava.
Foi recebido pelo conterrâneo Celso Furtado, que trouxera do Chile uma encomenda muito especial: um livro de Pablo Neruda, o poeta chileno, que seis anos depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura. O livro, de 1.924 páginas, intitulado Obras Completas, estava oferecido a Arraes por um grupo de brasileiros também perseguidos pelo golpe militar: Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Almino Afonso, Arthur da Távola, Tiago de Melo e Paulo Freire. Arraes ficou emocionado.
Na mesa, vinho e queijo. Quando a noite atingia um estágio já bem avançado e o vinho também, a campainha da residência tocou. Celso Furtado e os donos da casa, meio perplexos, indagaram, em voz alta, quem seria essa visita não anunciada e numa hora já incomum para se ir à casa de alguém?
No portão, aquele homenzarrão se destacava não só pela altura, mas também pela elegância e por um casquete que lhe encobria a calvície e lhe dava um charme a mais. Era Pablo Neruda, de carne e osso.
Arraes foi apresentado a ele naquele momento. O presente que Arraes acabara de receber foi mostrado ao poeta chileno, que pôs de imediato o seu autógrafo. Aquela coincidência teve um significado tão forte e místico para Arraes que ele levou a lembrança daquele momento para o resto da vida.
Quase quarenta anos depois, Arraes deu o livro, recheado não só de poemas, mas também de história e de emoções, ao seu filho Luiz Cláudio Arraes de Alencar, numa ocasião muito especial para um pai: Lula, como é conhecido, acabara de concluir o doutorado em Medicina.
E, assim, aquela noite parisiense, tão singular, se perpetuou para sempre no seio da família Arraes.”