Compartilhado de Jornal GGN –
Ela viajava no dia 3 de abril, num voo da GOL de Boa Vista para São Paulo, quando passou mal e morreu sem receber nenhum tipo de socorro ou o atendimento de urgência que, por lei, teria que ser dado a uma mulher grávida em um avião.
por Lucia Helena Issa
Refugiada, haitiana, grávida de sete meses e sem jamais ter tido envolvimento com o tráfico de drogas, a jovem Elenise era o rosto da esperança ao entrar naquele avião.
Sonhava em viver em São Paulo com o marido, que a esperava ali, e o lindo bebê que estava para nascer.
Ela viajava no dia 3 de abril, num voo da GOL de Boa Vista para São Paulo, quando passou mal e morreu sem receber nenhum tipo de socorro ou o atendimento de urgência que, por lei, teria que ser dado a uma mulher grávida em um avião. E isso segundo relatos de passageiros.
Foi tratada pelos tripulantes da GOL como se fosse uma “mula do tráfico”, mesmo sem nenhum indício de que realmente o fosse.
Os comissários acharam que uma mulher negra, saindo de Boa Vista para São Paulo, passando muito mal durante o voo, só poderia ser uma “mula” do tráfico de drogas.
Não, ela não poderia ser uma mulher negra, grávida, com sonhos bonitos de vida e de maternidade, como os meus e os seus, com um bebê em seu ventre, uma ultrassonografia em sua bolsa (que nem sequer foi aberta) e um homem que a amava e a esperava no aeroporto de São Paulo.
Não.
Na equação perversa de muitos brasileiros xenófobos e repletos de ódio aos refugiados, sejam eles senegaleses, palestinos ou haitianos, uma refugiada+negra+pobre+ uma dor súbita= mula do tráfico.
Valmyr e a cabeleireira Elenise se casaram em fevereiro de 2020 em Cap-Haïtien, no norte do Haiti, com uma festa linda, repleta de convidados, de respeito às tradições locais e sonhos de viver em paz e trabalhar no Brasil. Os dois tinham também o sonho de ajudar os pais, que enfrentam as consequências do terremoto no Haiti e uma abissal pobreza.
Tiveram de enfrentar antes os longos dias de caminhada e as ameaças dos coiotes durante a travessia.
Em março do ano passado, eles atravessaram a fronteira e chegaram ao Brasil para tentar trabalhar com dignidade, sem o medo de serem mortos por um desastre natural ou pelo ódio interno de um país destruído. Em Boa Vista, o casal Valmyr e Elenise trabalhou muito para sobreviver e alugar uma pequena casa.
Com o agravamento da pandemia, Valmyr perdeu a fonte de renda como ajudante de pedreiro e ela perdeu a possibilidade de fazer as tranças que fazia, com imensa alegria, nos cabelos de outras haitianas.
O casal foi despejado logo após descobrir que a jovem esposa estava grávida.
Um amigo os abrigou, mas vendo a fome aumentar e o pesadelo renascer, Valmyr aceitou o convite do amigo Augustin para viver em São Paulo. Mas ele só tinha o dinheiro para uma passagem aérea. Decidiu partir logo para começar a trabalhar e deixá-la na casa de amigos até conseguirem o dinheiro para a outra passagem. Ao chegar em São Paulo, os amigos se uniram para comprar a passagem da jovem esposa e Valmyr se sentiu imensamente feliz e grato ao país que o acolheu.
Eles seriam felizes, ele continuaria a trabalhar bastante como ajudante de pedreiro, o bebê nasceria, ela voltaria a fazer as lindas tranças nas companheiras haitianas em São Paulo.
A esperança e os sonhos de paz e dignidade voltaram a povoar seus corações.
Até que, ao passar mal naquele avião rumo a São Paulo, a jovem mulher descobriu que tinha a “cor errada” e um sotaque de refugiada haitiana que poderia ser mortal ao transformá-la em uma ” suspeita de mula ” ( e ainda que o fosse, não mereceria receber ajuda médica?).
Elenise não recebeu nenhum dos atendimentos de emergência destinado a mulheres grávidas que passam mal em aviões.
Foi deixada agonizando pelos tripulantes até o avião pousar em Manaus, onde a equipe médica do aeroporto descobriu que nada mais poderia fazer para salvá-la ou ao bebê em seu ventre.
Valmyr não foi avisado pela companhia aérea e só descobriu tudo isso muitas horas depois. Partiu imediatamente para Manaus, onde ouviu dos funcionários do IML que ele deveria denunciar o caso à polícia pois houvera uma grave omissão de socorro.
Perdoe-nos, Valmyr, por termos nos transformado em um país de odiadores, de xenófobos e covardes.
Perdoe-nos, Valmyr, pela morte da jovem mulher e do bebê que você tanto amava. Perdoe-nos, Valmyr, por você nem sequer ter sido avisado da morte de sua jovem esposa e ter descoberto sua imensa perda pela imprensa.
Perdoe-nos, Valmyr, por você ter ficado horas naquele aeroporto, repleto de sonhos e esperanças, sem sequer ser informado da morte de seus sonhos.
Perdoe-nos, Valmyr, por sua jovem esposa morta ter sido deixada por horas num avião em Manaus.
Perdoe-nos, Valmyr, pela crueldade dos tripulantes, por sua pequenez e seu racismo criminoso.
Perdoe-nos, Valmyr, pelos racistas e covardes que se calaram ao descobrir que o laudo revelava que ela morreu em decorrência de um edema no pulmão e que não havia nenhum resquício de entorpecentes em seu estômago.
Perdoe-nos, Valmyr, pelo fascismo, pela xenofobia e pelo ódio aos refugiados, perdoe-nos por tudo o que destruiu o meu País e o seu sonho.
Lucia Helena Issa é jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização internacional. Foi colaboradora da Folha de S.Paulo em Roma. Autora do livro “Quando amanhece na Sicília”. Pós-graduada em Linguagem, Simbologia e Semiótica pela Universidade de Roma. Atualmente, vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio e está terminando um livro sobre mulheres palestinas que lutam pela paz.