Por Adriana Pavlova, publicado em Projeto Colabora –
Além de estimular empoderamento por meio do empreendedorismo, casa só para elas tem até aula de gênero
O aroma de comida fresquinha, daquelas feitas com bastante cebola refogada, dá as boas-vindas antes mesmo do bom-dia ou do boa-tarde, na casa de número 42, na simbólica Rua da Paz, Parque União. Uma das 16 comunidades do Complexo de Favelas da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. E não é por menos: logo no térreo, bem ao lado da recepção da Casa das Mulheres, funciona a cozinha industrial onde são preparados os quitutes, pratos doces e salgados, que, desde 2010, levam a fama do Buffet Maré de Sabores para além das redondezas.
Numa quinta-feira de fevereiro, duas cozinheiras preparavam chips de batata doce e recheio de carne para pastel, para eventos em diferentes partes da cidade. Dois andares acima, uma dúzia de mulheres tentavam entender seus desejos em relação aos seus próprios cabelos – muitos ainda alisados mas originariamente cacheados ou crespos – de suas (futuras) clientes. Era uma aula ministrada por Renata Varella, idealizadora do Clube das Pretas, salão de beleza a cerca de 20 quilômetros dali, na Zona Sul do Rio, dedicado às mulheres negras, cujo diferencial é apostar em tratamentos sem química ou alisamento.
Era um dia normal na Casa das Mulheres, projeto da Redes de Desenvolvimento da Maré, que desde sua inauguração, em outubro de 2016, vem movimentando anualmente a vida de cerca de 400 mulheres da região. Há cursos de gastronomia e beleza, atendimento psicosóciojurídico, aulas sobre gênero e cidadania, além de rodas de conversa sobre questões do universo feminino. Uma missão que à primeira vista pode ser apresentada como promoção da autonomia econômica de mulheres da favela, mas que, na prática, mexe com o que há de mais íntimo nesse grupo: seus desejos de ser e estar no mundo, algo historicamente negado às mulheres nascidas e criadas em territórios de baixa renda.
“Mobilizamos as mulheres a partir de uma demanda concreta que é a qualificação profissional e, a partir daí, vamos mobilizando outras dimensões delas. A mulher na Maré é estratégica no desenvolvimento territorial porque chefia domicílio, tem responsabilidade pelo trabalho doméstico, cuida da família e ainda busca gerar renda. Isso tudo tendo que lidar com barreiras objetivas e subjetivas, numa sociedade machista e desigual”, explica Maíra Gabriel, coordenadora do Eixo de Desenvolvimento Territorial da Redes da Maré.
O nascimento da Casa das Mulheres segue um contexto histórico no qual, desde os anos 1980, foram as mães, tias, avós e filhas que lutaram pela melhoria na infraestrutura básica na Maré. Uma luta pela busca de calçamento, iluminação, rede de esgoto e de água, que ganhou mais força quando Eliana Sousa Silva – hoje diretora da Redes da Maré – assumiu a presidência da Associação de Moradores de Nova Holanda (vizinha ao Parque União), em 1984, liderando uma chapa formada por mulheres.
A própria Redes da Maré, criada em 2007, é um retrato dessa presença forte da mulher na Maré: 80% dos 150 tecedores – nome dado a quem trabalha na Oscip – são mulheres. “Não somos uma organização feminina e nem feminista mas é muito revelador ser feita por mulheres. Historicamente, apesar de a população de mulheres ser apenas um pouco maior do que a dos homens, é um território onde as mulheres são mais engajadas e mobilizadas”, diz Maíra Gabriel. Essa proporção de 80/20 também se repete no número de pessoas atendidas pela Redes, em projetos como o Curso Preparatório para o Vestibular e a Escola Livre de Dança da Maré.
Dados sobre o território colhidos no Censo de Empreendedorismo, organizado em 2010 pela Redes, foram decisivos na escolha das atividades de formação oferecidas pela Casa da Mulheres. Dos 3182 estabelecimentos comerciais mapeados na região, 1118 eram ligados à gastronomia. E em segundo lugar estavam os salões de beleza. Naquela altura, o curso de gastronomia Maré de Sabores estava começando, com mães de um CIEP em busca de uma alimentação mais balanceada para seus filhos. Deu tão certo que em seguida já nascia o Buffet Maré de Sabores, que hoje custeia os cursos básico e avançado de gastronomia. Já o curso de Beleza tem apoio da L’Oréal Brasil, que montou uma sala de cabelereiro para a formação das mulheres. As alunas têm ainda 1/3 da carga horária dedicada a discussões sobre gênero e cidadania.
A casa da Rua da Paz também é polo de mulheres do projeto Maré de Direitos, que busca ampliar os direitos da parcela feminina da população local. Em 2017, começou o atendimento gratuito de assistentes sociais, que em seguida receberam reforço de uma psicóloga e de uma advogada.
“Criamos um espaço seguro para que as mulheres pensem em si. Muitas vezes elas vêm aqui com uma demanda jurídica e se dão conta de todo o ciclo de violência a que estão expostas. Por isso, é importante fortalecer o lado psíquico de cada uma, para que percebam seus desejos”, diz a assistente social Júlia Leal. Ela explica que a partir da triagem as mulheres podem participar do grupo terapêutico na casa, ser encaminhadas a órgãos públicos, como INSS e núcleos da Defensoria Pública, e ao serviço de psicologia da Unisuam, em Bonsucesso.
A partir de março de 2019, este processo ficará ainda mais aprofundado, com o início do trabalho regular de mentoria para as alunas de gastronomia e beleza. Com apoio da Nissan e do Instituto Ekloos, o projeto “Trajetórias” contará com grupos de conversas sobre orientação profissional, prometendo ainda trocas com mulheres da Maré que sirvam como modelo para quem ainda está procurando seus caminhos.
Com tantas iniciativas simultâneas, a Casa das Mulheres é uma referência capaz de inspirar outros projetos, como atesta Lívia Salles, assessora de Políticas e Programas da ActionAid no Brasil. A ONG global é parceira de longa data da Redes da Maré e apoiadora do imóvel da Rua da Paz.
“As mulheres e seus direitos estão no centro do trabalho de nossa organização, cujo objetivo principal é erradicar a pobreza do mundo. Encaramos a pobreza como uma violação de direitos”, opina Lívia. Ela adianta que este ano a ActionAid lança uma campanha internacional sobre mulher e trabalho. E conclui: “O trabalho sólido de promoção de autonomia econômica oferecido pela Casa da Mulheres não rompe só com o ciclo de pobreza em si, mas rompe com a posição tradicionalmente ocupada pelas mulheres naquele território”.