Por Ulisses Capozzoli, jornalista, Facebook
O corpo da ciência, em princípio, é tão vasto e enigmático quanto o Universo. A ciência é dinâmica, em transformação constante e, nesse sentido, sem identidade com a religião, com suas bases assentadas em dogmas. A religião é, por princípio, estática. Carente de movimento e, de muitas maneiras, definitiva. Mas vá falar sobre isso com um carola de qualquer uma das infinidades de igrejas que crescem como cogumelos e receberá dele um sorriso de indulgência pelo seu espírito tão reduzido. Grande é o dele, que se recusa a pensar. Por preguiça ou medo do que possa encontrar. Mas, e se fosse possível reunir um conjunto de cientistas de diferentes áreas e fazer com que uns mergulhassem nos universos dos outros, o que seria de se esperar? O diretor e documentarista americano Ian Cheney se propôs a esse experimento e o resultado está em “The Most Unknow”, numa tradução livre algo como “O Grande Desconhecido”, de 2018, na Netflix.
O resultado da interação? Uma sequência de surpresas e redescobertas, entre elas a percepção de que, por exemplo, a vida microscópica numa caverna espelha de muitas maneiras o que aparece em imagens de telescópios apontados para vastos campos galácticos, enxames estelares reunindo bilhões de sóis voando no espaço em expansão como nuvens de luminosos pirilampos. Most Unknow, de 95 minutos, é um documentário científico fascinante, ainda que muitos críticos tenham feito seus inevitáveis reparos.
Dei uma espiada no que alguns deles disseram: “Uma viagem superficial sobre temas muito profundos. Seria interessante jantar com quase todos esses sujeitos e observar como eles interagem”, escreveu um deles (John DeFore, The Hollywood Reporter).
A questão, aqui, é que há uma simplicidade no complexo, mas também uma complexidade no simples e isso talvez escape a muitos observadores pretensamente exigentes. Mas, na realidade, profundamente equivocados.
Não pense, por um segundo, que abordagens de alta complexidade permitam que você entenda de imediato do que se trata. Esses casos são, quase sempre, contra intuitivos, que seu cérebro se recusará a aceitar como algo convencional que possa alojar entre os outros velhos neurônios.
A estrutura do espaço-tempo granulado, isso mesmo, como se fosse um grão de sal (se preferir de açúcar cristal) é um exemplo. O tempo que costumamos enxergar sem qualquer relação com o espaço, quando, na verdade, formam um contínuo. Ou a ideia de que o tempo entre os moradores do térreo e o último andar de um edifício flua (na falta de melhor expressão) de forma diferenciada. Mas é o que acontece.
O sujeito do trigésimo andar, que se julga o dono do pedaço porque tem seus privilégios de visão, quase nunca enxerga que para ele o tempo passa mais rapidamente que para o morador do primeiro andar. Frações de tempo, é preciso dizer. Mas que é absolutamente real.
Ken Jaworowski, do NYT, concedeu que “é uma boa ideia e o diretor (Cheney) captura vários momentos interessantes (…) Mas tem defeitos. Não tem que ser totalmente satisfatório para que se aprenda alguma coisa”. Do pouco que vi, Nicolás Lauba, do uruguaio “El País”, fez a leitura mais interessante: “É um olhar interessante a uma face da ciência que poucas vezes se vê na tela, com inquietações novas e questões eternas”.
Eu diria que, por trás do documentário de Cheney está o que o físico belga de origem russa, Ilya Prigogine (1917-2003) propôs como ciência não dogmática, o que não significa, de forma alguma, qualquer concessão à lógica fácil, como se costuma entender bovinamente por aqui. Ou o que o filósofo francês Edgard Morin, que sempre visita o Brasil, chama de pensamento complexo, exigindo o olhar de vários campos para afirmar algo sobre alguma coisa.
No documentário de Cheney, um grupo de nove cientistas, começando por uma microbióloga (microbiologista, como se diz por aqui), passando a bola para um físico de partículas, alguém que trabalha com a desconcertante energia escura (se é que ela é real mesmo), passa por um psicólogo que investiga a natureza da consciência e envolve uma pesquisadora oceânica e também chega aos telescópios de Mauna Kea, a quatro mil metros de altitude, para investigar o coração da Via Láctea ou de outras regiões do céu.
Ao todo, os nove cientistas que participam do projeto, a última delas investigando a maneira como macacos operam a realidade, ficam fascinados sobre o que desconhecem, nos campos de pesquisa de seus colegas. Ainda que, quando os recepcionam, possam passar a ideia de que estão em terra firme e os que chegam é que navegam num oceano de alguma ininteligibilidade/instabilidade. Fascinante é um adjetivo para qualificar devidamente The Most Unknow.
É inevitável pensar e constatar o quanto nos distanciamos de um mundo sofisticado sob um governo de um homem tosco e mentalmente precário, diariamente disposto a mandar às favas a ciência, a cultura e tudo o mais associado à natureza do que os gregos chamaram de Kosmos.
Imagem: uma das participantes do documentário, no topo de Mauna Kea, observatório astronômico no Pacífico