O Grito de um Inocente

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 Por Wellngton de Araújo Arruda, em Justificando – 

Desde que iniciamos nossa carreira no Direito Criminal, visitar cadeias públicas, presídios e centros de detenções provisórias tem sido nosso cotidiano, e nesse mister, todo tipo de realidade temos visto.

Nos deparados com presos contendo doenças graves e contagiosas sem qualquer acompanhamento médico, falta de alimentação, alimentos azedos, falta de remédios, falta de trabalho (a grande maioria quer trabalhar), falta de espaço para estudo (a grande maioria não tem estudo e quer estudar), falta de água potável, execuções penais esquecidas e abandonadas, pessoas enganando-os com mentiras e promessas impossíveis para angariar lucro, muitas vezes à custa do sofrimento de toda uma família, enfim, toda sorte de ocorrências temos acompanhado em nosso cotidiano.




Visitar clientes em cadeias, presídios ou CDP’s sempre vem acompanhado de ensinamentos e jamais poderá ser considerada rotina. Conversamos com os detentos e ouvimos suas angústias, suas necessidades, seus anseios, seus “problemas” mais próximos, ouvimos o dia-a-dia de suas rotinas e damos-lhes um pouco do pão da atenção, pois sabemos que por vezes eles não têm sequer com quem conversar.

Em uma dessas visitas recebemos um recado que um interno queria conversar conosco e perguntou se poderíamos “sacá-lo” (pedir na portaria para levá-lo ao parlatório), confirmado com nosso cliente que o rapaz estava sem Advogado aceitamos conversar com este rapaz.

Em apenas dez minutos de conversa concluímos que tínhamos alguns amigos em comum. O preso era um instrutor de tiros, que já havia dado aulas para muitos indivíduos do exército brasileiro e também da Polícia Civil de São Paulo. Um instrutor que fez de seu “hobby” sua profissão, tornou-se empresário do ramo, ainda assim, como muitos, abandonado.

Contou seu caso detalhadamente, o que nos fez ter certeza que jamais poderia ter sido denunciado pelo artigo em que foi preso (tentativa de homicídio). Já estava um longo período preso naquele CDP e sequer tinha sido intimado da denúncia para a apresentação da resposta à acusação e já sofria todas as agruras do ambiente deletério do cárcere.

Não sabia como estava seu processo, não sabia sequer se existia um processo. Sua família ainda estava na luta para conseguir fazer a carteira de visitação e nunca havia recebido visita de qualquer Advogado, Juiz, Promotor ou Capitão.

Após nossa longa conversa, ele me entregou uma carta e pediu para que eu pensasse no que estava escrito ali. Quando cheguei em casa naquele dia, depois de um bom banho quente, com shampoo, sabonete, cremes e tudo o que um homem livre pode ter, sentei em uma poltrona confortável e li a carta que me foi entregue. Acostumado a conviver com o sofrimento do cárcere, ao ler a carta, passei a conviver com uma nova reflexão, e esta, compartilho com todos. Abaixo o texto da carta “ipsis litteris”.

“Desde pequeno sempre ouvi falar do inferno. O lugar aonde (sic) vive o Diabo, o Demônio, o mau (sic). Para onde vão todas as almas ruins, pecadoras, para queimarem no fogo eterno como forma de pagar por seus pecados, seus erros cometidos em vida.

Porém, também já ouvi falar como ‘o inferno começa aqui’, ou seja, em vida, que não precisamos morrer, transpassarmos limites da existência terrena, da carne, para experimentá-lo.

Num primeiro momento, não sei se discordo ou concordo, porém, analisando o cárcere em si, a cadeia, onde me encontro, me pergunto sobre qual deles é realmente o pior, o inferno espiritual ou este terreno, criado pelos homens para punir em vida os que cometem crimes, ou simplesmente são acusados de cometê-los. Se forem justos não sei, mas a analogia se torna pertinente entre ambos.

A primeira analogia que faço é que para ir ao inferno espiritual, temos que passar pelo ‘julgamento final’, onde Deus seria o Juiz e, segundo consta, Jesus, o Advogado, seria o mais justo possível.

Na vida terrena, podemos ir para o inferno, a cadeia, e lá ficar, bem antes de qualquer julgamento. Mas, ao sermos julgados, homens e mulheres serão nossos Juízes, tão passíveis de erros e falhas como eu, como nós.

No julgamento terreno, nosso destino, nossa vida, nossa condição humana e toda uma história de vida acabam se resumindo a uma pasta com papéis no fórum. O processo.

Agora me pergunto se realmente o inferno espiritual é pior, ou menos pior que o inferno terreno, este, a cadeia.

Creio serem os sofrimentos no mínimo iguais, mas na grande maioria das vezes o inferno terreno deve ser pior. Aqui seres humanos são jogados ‘ao léu’, esquecido, sem família, sem Advogado, sem ninguém que os represente ou mesmo se importe com eles.

Vagam o dia inteiro, andam em círculo, num circuito repetitivo, sem motivo, sem rumo, sem vida, como ‘almas penadas’ numa casa assombrada.

O dia se resume ao que comem, acordar e dormir, nenhuma notícia, nenhuma esperança, nenhuma vida parece emanar daqueles corpos.

Há ainda os doentes mentais, que parecem verdadeiros zumbis perambulando como em um filme de terror. Geralmente estão fétidos pela falta de banho e outros produtos básicos de higiene.

Existem os indivíduos com AIDS, tuberculose, deficientes físicos, peste bubônica, todos literalmente esquecidos pelas famílias e ignorados pelo estado e pela sociedade.

As celas onde todos se acomodam em superlotação são velhas, sujas, úmidas, lembram muito os calabouços medievais, um verdadeiro ‘umbral’ entre vivos.

A falta de apoio, remédios, assistência médica e jurídica adequadas agravam ainda mais o nefasto quadro.

Certo dia, depois da visita, um preso, talvez angustiado por ser esquecido, sozinho, encostou-se à parede do pátio e passou a ‘gillete’ no próprio pescoço. Quando vi aquilo olhei nos olhos dele, pareciam vazios, sem vida, sem esperança, enquanto o sangue esguichava de sua veia.

Outros presos o socorreram rapidamente tentando estancar o sangramento com um pano e encaminharam-no para a enfermaria, nunca mais o vimos. Em outra oportunidade vi um indivíduo cortar o próprio pulso. Outro morreu num infarto, na frente de todos, em pleno dia, sem suporte, sem ajuda, sem socorro.

Há ainda as humilhações constantes, falta de alimentação devida… aqui neste inferno terreno o indivíduo descobre o que é verdadeiramente o termo ‘passar fome’.

Para a alegria e lembrança da vida, temos o dia de visita, que nos é como um alento. Poder rever nossos parentes e ter notícias do ‘lado de fora’. Esse alívio no meio de tanto sofrimento no inferno terreno deve ser como uma oração a uma alma que fazemos para o plano espiritual.

Começo a me questionar de fato sobre o inferno espiritual, onde, segundo consta, apenas queima-se a alma por toda a eternidade. Qual dos dois é realmente pior? Depois de tudo o que falei, ainda há espaço para temer o inferno espiritual e o diabo?

Será que as almas se acostumariam com o fogo eterno assim como em vida acostuma-se com a fome, a miséria, a humilhação, a corrupção e a injustiça?

Tenho a impressão que este inferno é tão ruim que nem o demônio fica aqui, apenas vem, faz o seu serviço e vai embora para o inferno dele, bem mais ameno que este.

Aqui ainda há outro tipo de sofrimento, para mim, o pior deles, a pior das dores, uma dor que não dói no corpo, mas na mente, na alma, que é a saudade, as boas lembranças que temos; nossas melhores memórias; nossos melhores momentos de toda uma vida se tornam nossos piores pesadelos, nos atormentam dia e noite. Filhos, família, a ausência deles gera uma dor que não dá para medir.

Parece queimar a alma, torce o coração, é a que mais dói. Tenho a impressão que nunca vai acabar, que é uma ferida que nunca se fechará. Essa dor me faz concluir que não há felicidade onde impera a saudade.

Tudo isso parece tornar o inferno espiritual um ‘parque de diversões’, tamanho sofrimento aqui dentro. Tenho a impressão que não temos saída, que jamais se abrirão as portas para nossa saída, que a liberdade nunca chegará. A inércia do sofrimento, a letargia da justiça e tudo mais nos leva a ver a morte como um largo portão de saída, para muitos, o único. A passagem desse inferno vivido para o outro mais ‘leve’, o espiritual.

Como se pode notar, a morte sempre nos ronda, nos flerta. Aqui começamos a vê-la com outros olhos, nossa ótica muda sobre diversos assuntos, inclusive como vemos o mundo, pois esse inferno real passa a ser nosso mundo, ainda que nada tenhamos feito para cair aqui.

Na medida em que os dias passam, sem volta, a saudade e a angústia aumentam, a esperança diminui e assim a vida se vai, dia após dia, num cotidiano imutável e maldito.

A morte… uma saída… sempre ali, se pensarmos bem, já estamos mortos. Mortos para a vida fora daqui, já que lá fora não existimos mais, somos apenas lembranças, assim como os mortos de fato.

Agora, o que é realmente o inferno ou a morte: tudo se confunde, o sofrimento agudo do ser acaba como uma amálgama, aonde tudo se funde.

Agora pergunto, e Deus? Aonde ele se encaixa? Onde está? Dizem ser onipresente, que está em todos os lugares, menos no inferno, já que lá é exclusividade do diabo. Será que o inferno terrestre é igual? Se o próprio diabo não fica aqui, por que Deus ficaria?

Só me resta mesmo esperar o que virá primeiro. Será a morte? será Deus? será o inferno?

Hoje rezei para Deus pedindo a morte, pedindo para conhecer o inferno espiritual, aquele de fogo. Que assim seja, porque se estou passando por este, aquele será fácil.”

Welington Araujo de Arruda é advogado graduado em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Combate à Lavagem de Dinheiro e Tráfico de Seres Humanos, ambos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, Órgão Vinculado ao Ministério da Justiça; Especialista em História da Filosofia pela PUC/SP; Pós graduando em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Paulista de Direito.

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