Responsáveis por cerca de 60% das emissões de gases de efeito estufa, centros urbanos têm contribuído pouco para a solução do problema
Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora
A desigualdade vista do alto, na divisão entre a Gávea e a Rocinha, no Rio de Janeiro: agenda ainda mais urgente com a pandemia. Foto Custódio Coimbra
Se o esforço das lideranças mundiais em direção à uma economia de baixo carbono tem sido lento, arrastado, quase imperceptível entre uma e outra edição das conferências climáticas, o movimento das cidades no mesmo sentido segue a passos de cágado manco. Hoje, os grandes centros urbanos abrigam mais de 55% da população mundial e respondem por cerca de 60% das emissões de gases de efeito estufa. No entanto, pouco têm feito para alcançar a meta do Acordo de Paris de limitar o aumento das temperaturas médias globais a 1,5 graus Célsius. Pesquisa publicada em 2018 no jornal acadêmico Environmental Research Letters analisou uma amostra de 13 mil cidades, grandes, médias e pequenas, e descobriu que 100 delas respondiam por 18% da pegada planetária de carbono. O mesmo levantamento mostrou que 68 das 13 mil cidades haviam assumido publicamente o compromisso de reduzir as emissões, mas apenas 30 registraram algum avanço nesses objetivos.
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Mas afinal, que contribuições as grandes cidades podem dar para o enfrentamento da crise climática? Da mobilidade urbana ao tratamento do lixo, da produção de energia nas residências à redução do consumo, são muitas as iniciativas que poderiam ser adotadas localmente. Quase todas com tecnologias disponíveis e, muitas delas, dependendo apenas de vontade política. Entretanto, quando se olha para 2050, ano em que muitos países e empresas prometem zerar as suas emissões líquidas de carbono, o que se vê são ações pontuais, algumas lideradas pela indústria automobilística ou pelas grandes empresas de tecnologia. Estão neste grupo, por exemplo, os carros elétricos e os automóveis autônomos, que circulam sem motoristas. Para Clarisse Linke, diretora do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), essas opções sozinhas não só não resolvem o problema como podem criar outros:
“Como sempre, as mudanças climáticas vão atingir mais fortemente a população pobre, os mais vulneráveis. Não adianta ter um carro elétrico, sem motorista, transportando apenas uma ou duas pessoas. Isso é caro, perigoso e não resolve o problema. Precisamos de mudanças reais, de transporte público de qualidade, faixas exclusivas…Uma pesquisa feita em Lisboa mostrou que com apenas 10% dos carros em circulação é possível transportar toda a população de uma cidade. Basta incentivar o transporte compartilhado”, sugere Clarisse Linke.
Duas características importantes aproximam a história da construção das metrópoles, no Brasil e no mundo, e a crise climática que vivemos hoje. Tanto uma quanto a outra ignoram, sistematicamente, os limites da natureza e a desigualdade social. Quem mais emite gases de efeito estufa são as pessoas que consomem mais, que gastam mais energia, que andam de carro e de avião. Quem mais sofre com os eventos climáticos extremos, como as secas, as enchentes e os desabamentos é a população mais vulnerável que, por sua vez, tem uma pegada de carbono muito menor. Aliás, são os mesmos que mais se internam com doenças pulmonares, que são vítimas de acidentes de trânsito e que perdem horas em deslocamentos diários de casa até o trabalho.
Roberto Andrés, urbanista e professor da UFMG, acredita que diversas fases da catástrofe climática global já foram trilhadas antes pelas grandes cidades brasileiras. Segundo ele, tudo começa com a ocupação voraz do território, indiferente aos elementos naturais: impermeabilização extensiva do solo, supressão da vegetação, emissão de poluentes: “Quando os problemas começam a incomodar, opera-se como se eles fossem, por um lado, males necessários para o progresso, e, por outro, como se fossem solucionáveis no futuro, graças a alguma inovação tecnológica que virá. Muitas vezes, essas soluções alimentam o mesmo ciclo que pretendiam reverter. As enchentes ficam piores ou migram para outro ponto. O trânsito piora. Quando as complicações chegam a níveis extremos, busca-se alguma fuga que resolva o seu problema: a saída para os condomínios talvez seja o antepassado primitivo da busca pela colonização de outros planetas. Vai-se embora e deixa-se o abacaxi para aqueles que não podem partir”, escreveu o professor em um artigo para a revista Piauí.
Atualmente na Europa, Roberto Andrés está pesquisando as novas ações de mobilidade urbana em cidades como Paris e Barcelona. Ele cita o exemplo de uma avenida no centro de Paris que foi inaugurada em 1967, por onde transitavam diariamente, cerca de 42 mil carros. Recentemente ela foi transformada em via de pedestres e os automóveis simplesmente desapareceram: “No início até houve alguma reclamação, mas hoje ninguém sente mais falta, os motoristas buscaram outras alternativas. Barcelona segue pelo mesmo caminho, está criando novas ciclovias e restringindo a circulação de carros. Para cada três ruas da região central da cidade, uma passará a ser exclusiva para pedestres”, explica.
Atualmente, nos Estados Unidos, cerca de 30% das emissões são do setor de transportes. E dessas, 60% são causadas pelo transporte individual. Ou seja, 18% das emissões da maior economia do mundo são provocadas pelo carro. O consumo de energia para mover um carro de uma ou duas toneladas é muito maior do que o necessário para deslocar um passageiro no transporte público. Não faz sentido. Há muito o que se fazer para reduzir as emissões das cidades, na construção civil, no tratamento de resíduos, na energia e em várias outras áreas. Até porque, se nada for feito, quem vai pagar a conta são os moradores dessas cidades, especialmente, os mais pobres. As ondas de calor extremo, os tornados, as enchentes, as secas e os desabamentos estão aí para mostrar o que muitos não querem ver.