A recente série da Netflix O império da dor (Painkiller), baseada na crise de opioides nos Estados Unidos causada pela Purdue Pharma e sua droga OxyContin, tem gerado reações acaloradas.
Por André Islabão, compartilhado de seu Blog
Muita gente ficou boquiaberta ao saber que eram verdadeiras muitas das coisas que ouviam falar com desconfiança a respeito da indústria farmacêutica. De alguma maneira, o fato de essa história estar agora amplamente disponível em uma plataforma de streaming popular deu credibilidade à narrativa de que há muita coisa errada no submundo das drogas lícitas. Para quem já conhecia esta e outras tantas histórias tristes relacionadas à indústria farmacêutica, não há qualquer surpresa nos fatos relatados na série. Igualmente importante é lembrar que tudo o que está descrito na série se baseia nos autos dos processos legais que constam no Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Ainda que alguns nomes tenham sido trocados para proteger as pessoas envolvidas, o que se vê ali é a verdadeira história do que aconteceu. Uma realidade triste e sombria.
Quem imagina que a Purdue Pharma possa ter agido de maneira muito diferente de outras empresas do setor ficaria surpreso ao saber que seu modus operandi é semelhante a todos os outros casos que seguem acontecendo até hoje: um medicamento é analisado em estudos para lá de discutíveis realizados pela própria indústria, as agências reguladoras fingem acreditar piamente nos dados apresentados pela indústria e fortunas são gastas em marketing para profissionais e em anúncios midiáticos sensacionalistas para os futuros consumidores da droga. Se a coisa der certo para a indústria – como geralmente é o caso –, é só contabilizar os bilhões que em breve chegarão às burras da empresa. Se surgirem problemas e alguma falcatrua for descoberta, a empresa simplesmente faz um acordo judicial, gasta vários milhões, mas segue no lucro e com a ficha limpa na justiça[1]. Não é difícil perceber que este é sempre um bom negócio para a indústria.
Uma das coisas que ficou em segundo plano na série é o papel que a classe médica desempenhou na tragédia. Vale a pena lembrar que os medicamentos que necessitam de receita controlada (como é o caso do OxyContin e de tantos outros medicamentos com potencial de abuso) não causariam uma crise dessa magnitude sem a participação dos médicos que forneciam as receitas. Imagino haver três possíveis formas de participação dos profissionais neste processo: ingenuidade, complacência ou conivência.
No caso do OxyContin, a ingenuidade estaria em acreditar nas alegações dos representantes de laboratório e nos estudos apresentados pela indústria, já que os médicos aprendem no primeiro dia da faculdade que opioides são drogas perigosas e de altíssimo potencial de abuso. A complacência ocorre quando a Medicina faz vista grossa ou apenas observa passivamente enquanto a crise se desenrola sem nada fazer de efetivo para coibir o exagero no uso da droga. A conivência abrangeria aqueles casos mais grotescos – e quero crer que sejam muito poucos – de profissionais que participam ativamente das fraudes aceitando estímulos variados da indústria para prescrever cada vez mais da droga em questão, o que pode incluir desde dinheiro vivo até outros presentes caros como vinhos, jantares, viagens e outras formas de massagem do ego, como visitas de representantes de laboratório atraentes ou a participação em estudos ou eventos científicos fajutos da própria empresa.
Há quem não concorde com a ideia de que os médicos foram fundamentais na gênese da crise dos opioides e prefira colocar toda a culpa na indústria, mas meio milhão de mortes direta ou indiretamente relacionadas a uma droga que não deixa o balcão da farmácia sem receita médica é difícil de engolir[2]. O risco de colocarmos toda a culpa na Purdue Pharma é não apenas o de negligenciar o papel dos médicos na crise, mas de desconsiderar que uma crise dessa magnitude só acontece devido a uma série de problemas que permeiam todas as etapas que envolvem o uso de medicamentos na área da saúde. E, como sabemos, se os erros não forem reconhecidos, fica muito mais difícil evitá-los.
A literatura sobre o assunto é vasta e quem ficou curioso tem inúmeras opções para se deleitar com as peripécias da indústria em um sistema altamente disfuncional. Desde os livros mais comportados de Marcia Angell[3] e Ben Goldacre[4] – que abordam as relações perigosas entre aqueles que produzem ou publicam a ciência médica e a indústria farmacêutica – até os mais picantes de Peter Gotzsche[5] e John Virapen[6] – os quais, como ex-representantes comerciais da indústria farmacêutica, conhecem bem as entranhas dessas empresas –, pode-se ter uma ideia mais ampla (e bem menos bonita!) do que tem sido o papel da indústria farmacêutica no setor dos cuidados de saúde. Entre as atividades da indústria que estão descritas nos livros há desde a distorção da ciência que embasa as decisões dos médicos até o marketing indevido de produtos e a compra do apoio de profissionais de saúde, gestores públicos e formadores de opinião em prol da busca incessante por lucros, muitas vezes colocando em risco a saúde da população e a própria sustentabilidade dos sistemas de saúde.
O tal império da dor sugerido no seriado vai muito além da Purdue Pharma, e colocar toda a culpa na empresa pode até ser confortável, mas nos leva a insistir nos mesmos erros e perpetuar outras tantas crises parecidas. A verdade é que não poderíamos esperar nada diferente do que aconteceu, já que permitimos que a indústria farmacêutica controlasse ou tivesse influência decisiva em todas as etapas que definem as intervenções que os médicos indicarão e às quais as pessoas se submeterão[7]. Esta influência nefasta da indústria atinge desde a produção científica[8] até a publicação da ciência[9], as agências reguladoras[10], as faculdades de Medicina[11], os grupos de defesa de pacientes[12], as associações médicas[13], os políticos[14] e, é claro, a mídia[15]. Com todas essas forças a favor da indústria, não é de estranhar que a família Sackler continue riquíssima, que o OxyContin ainda seja comercializado e que as mortes por overdose de opioides sigam aumentando. Enfim, o verdadeiro império da dor está mais vivo do que nunca e pronto para contra-atacar. E nada mudará enquanto permitirmos que tudo permaneça igual.
[1] https://www.justice.gov/opa/pr/biogen-inc-agrees-pay-900-million-settle-allegations-related-improper-physician-payments
[2] https://www.cdc.gov/opioids/basics/epidemic.html#:~:text=From%201999%2D2021%2C%20nearly%20645%2C000,outlined%20in%20three%20distinct%20waves.
[3] Angell, M. The truth about the drug companies – How they deceive us and what to do about it.
[4] Goldacre, B. Bad pharma – How drug companies mislead doctors and harm patients.
[5] Gotzsche, P. Deadly medicines and organized crime – How big pharma has corrupted healthcare.
[6] Virapen, J. Side effects: death – Confessions of a pharma insider.
[7] Sismondo, S. Ghost-managed medicine – Big Pharma’s invisible hands.
[8] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846
[9] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1383755/
[10] https://www.forbes.com/sites/johnlamattina/2018/06/28/the-biopharmaceutical-industry-provides-75-of-the-fdas-drug-review-budget-is-this-a-problem/?sh=45e1664149ec
[11] https://globalnews.ca/news/5738386/canadian-medical-school-funding/
[12] https://patientsforaffordabledrugs.org/2021/06/29/new-report-big-pharma-influence-patient-advocacy/
[13] https://www.theguardian.com/business/2023/jul/08/its-naive-to-think-this-is-in-the-best-interests-of-the-nhs-how-big-pharmas-millions-are-influencing-healthcare
[14] https://www.statnews.com/feature/prescription-politics/federal-full-data-set/
[15] https://www.drugwatch.com/featured/big-pharma-marketing/