Quantas vezes não vemos juízes justificando as condenações e as prisões que decretam – seja em discursos públicos ou privados, seja nas próprias sentenças – com base na necessidade de “combater a criminalidade” ou “lutar contra a corrupção”?
No campo jurídico, é relativamente fácil apontar onde está o erro nessa postura de tantos “magistrados”. A posição do “juiz-combatente” não se adéqua ao nosso sistema constitucional e pode ser desconstruída por diversas aproximações, que vão desde perspectivas mais liberais e processualistas, prescrevendo um juiz equidistante entre a defesa e a acusação, até concepções criminológicas que indicam ser papel do juiz conter o poder punitivo, colocando freios ao Estado penal.
Em poucas palavras: se o juiz está em guerra contra os criminosos, quem os está julgando?
A coisa fica mais complicada quando entramos no campo social e político – e não podemos esquecer que as decisões judiciais dialogam e são responsivas também às expectativas e pressões sociais (afinal, o discurso e a prática jurídica não se encerram em si mesmos).
Aqui, as expectativas para com o “sistema de justiça” são, mesmo, de enfrentamento aos “bandidos” – do policial na rua, passando pelo delegado, promotor e juiz, chegando até o agente penitenciário. Todo esse sistema deveria ter um só foco: reprimir, prender, punir, castigar. É o que prega a intelligentsia midiática brasileira, é o que mostram as pesquisas de opinião e é o que sentimos conversando com as pessoas na rua, nas redes sociais, no trabalho ou em nossas famílias.
Vejam, não estou falando apenas dos juízes mais reacionários, aqueles que vomitam o discurso de ódio racista e classista, que se consideram seres de uma espécie superior aos sujeitos ‘negros e sujos’ levados às audiências para serem quase sempre condenados. Aliás, esse texto não tem a menor pretensão de dialogar com esse povo, pois onde falta alteridade, solidariedade e um mínimo de humanidade, não serão essas poucas linhas que moverão uma palha.
Penso, pelo contrário, em uma amiga recém empossada juíza no estado do Rio de Janeiro. Numa conversa recente, ela contava que os processos de tráfico de drogas são os que mais lhe incomodam. Porque é quase sempre daquele jeito: a única prova é a palavra do policial. O que fazer?
O legalismo garantista poderia resolver a questão. Afinal, como juízes não são agentes de segurança pública, eles devem atuar com base nas garantias constitucionais e legais, impedindo que em nome da ordem se violem direitos fundamentais.
Com essa premissa, é óbvio que apenas a palavra do policial não poderia ser considerada prova suficiente para uma condenação – sabemos que policiais muitas vezes trabalham com metas formais ou informais de prisão, que a atuação ostensiva na rua é de enfrentamento a grupos de jovens de perfis pré-definidos, que há filtragem racial nas abordagens e prisões realizadas.
Leia também: Rafael Braga: o preso político da política de segurança
Se o juiz ou a juíza conhece o trabalho daqueles policiais, se sabe que eles são sérios ou não, isso pouco deveria importar – já que essa confiança subjetiva, além de imprópria à equidistância que deveria manter das partes, também lhe embaça os olhos para possíveis (e constantes) injustiças.
Mas a premissa acima dialoga apenas com uma dimensão do problema. As expectativas em torno da atuação dos juízes não se esgotam na racionalidade meramente jurídica – a sociedade quer que o sistema funcione, ele precisa funcionar. Por aí, já ouvi de muitos juízes e juízas: “ou é assim ou não prendemos mais ninguém por tráfico”.
Condena, então? E o incômodo? Por que ele continua ali?
Tenho gostado da chave da igual dignidade para encarar esses dilemas. Não se trata de qualquer dignidade – daquela dignidade apequenada, reduzida ao mínimo do mínimo, uma visão do aristocrata sobre o que seria suficiente para o plebeu resignar-se e aceitar sua sina.
Afinal, em uma compreensão rasteira de garantias processuais, há sempre uma narrativa jurídica capaz de justificar a condenação: “os ritos e procedimentos foram devidamente cumpridos”; “o contraditório e a ampla defesa foram respeitados”; “não há nada nos autos que desabone os indícios ou as informações prestadas pelo agente público”.
E se fosse com você? Com seu filho? Com sua amiga? Com outra pessoa branca, da sua classe, do seu círculo social?
Nunca, jamais, de forma alguma um juiz admitiria que um semelhante fosse condenado e preso com bases tão precárias.
Essa condenação só é possível com os outros – com aqueles que não enxergamos como iguais, para quem o pouco é muito e, então, a presença formal de ritos e qualquer coisa dita como “prova” pode ser capaz de tranquilizar nossa alma. Daí que, para quem busca uma prática judiciária humana, a régua deve ser a da igual dignidade.
O incômodo é a alteridade gritando. É que lá no fundo sabemos que muitos entendimentos enunciados como jurídicos (Súmula nº 70 do TJ-RJ: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”) contém em si a falta de reconhecimento do outro (o jovem negro que perfaz o estereótipo de “bandido”) como um semelhante, merecedor da mesma dignidade (processual, material, humana) que os “nossos”.
Qual a opção, então? Não vai mais prender ninguém? Vai. O sistema vai continuar funcionando.
Apesar da inércia processual, juízes são atores ativos na produção da política criminal (no país como um todo ou em cada pequena comarca). Ao processar e condenar jovens presos por tráfico de drogas, com base apenas na palavra de policiais, eles não apenas violam direitos fundamentais. As sentenças fazem mais do que isso. Elas também dizem aos policiais como agir: como devem atuar na rua em suas abordagens e prisões em flagrante, como deve ser a atividade investigativa para compor um conjunto de provas que seja suficiente para sustentar uma condenação.
Sendo nó central no fluxo da justiça criminal, o entendimento judicial é capaz de transformar as práticas dos atores que lhe antecedem na persecução penal. Policiais, delegados e promotores moldam sua atuação a partir da validação – ou não – do trabalho desenvolvido. Se a palavra do policial não bastar uma, duas ou três vezes, no quarto processo teremos outros elementos de prova, resultados da (hoje praticamente inexistente) investigação.
É possível (e desejável) que isso impacte no volume do enorme navio negreiro que é o encarceramento no atacadão – daquela prática punitiva fordista que conhecemos (“o policial confirma o depoimento? Condenado. Próximo”). Mas se esses jovens algemados são nossos semelhantes e merecem um tratamento igualmente digno, se essa forma de fazer justiça criminal não está nos levando a uma sociedade mais segura, por que não mudar?
O caminho da igual dignidade é, certamente, o mais difícil. Vai na contramão da cena de violações que está posta, significa se colocar em um lugar vulnerável, de exposição, de incertezas. Mas qual a outra opção, se são os juízes e juízas que ocupam os lugares mais privilegiados para se insurgir contra as injustiças da própria “Justiça”?
Victor Martins Pimenta é pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais e do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação, ambos da UnB. É doutorando em Direito e mestre em Direitos Humanos pela UnB. É servidor público federal da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e foi Coordenador-Geral de Alternativas Penais do Ministério da Justiça (2014-2016).