O inferno das boas intenções. Ou: para 2023, melhorem!

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Não me peçam para considerar aliado quem não é sequer capaz de ouvir as críticas de mulheres negras. Quero distância desse tipo de aliança

Por Prosa Preta, compartilhado de Projeto Colabora




Recentemente me deparei com duas publicações de veículos de comunicação, autointitulados aliados da luta antirracista, que refletiam ilustrações com os mais básicos estereótipos mobilizados para a manutenção de ideologias racistas e supremacistas brancas. Um deles reproduzia o jogador francês Kylian Mbappé, vítima recorrente do cordial racismo brasileiro. O outro reproduzia a eterna figura da mammy, imagem de controle histórica que reforça a subalternidade de mulheres negras e contribui para a exploração do trabalho dessas mulheres bem como obstaculiza nossa cidadania.

O veículo que publicou a charge racista de Mbappé retirou o conteúdo do ar e lançou uma nota de desculpas, reconhecendo o erro e afirmando seu compromisso com a causa antirracista. O veículo que utilizou as caricaturas de mulheres negras optou por outra saída: apontou que o objetivo era justamente retratar o estereótipo. Apesar de inúmeras vezes assinalar estar aberto ao diálogo, o diálogo oferecido se restringiu em recomendar que as pessoas consumam o conteúdo por eles produzido e ignorar completamente as considerações de diversas pessoas negras especialistas no tema.

A essa altura do campeonato não é mais segredo para ninguém que sou uma estudiosa da dimensão ideológica do racismo e do sexismo: as imagens de controle. Dediquei meus estudos de mestrado ao tema, a partir do pensamento de Patricia Hill Collins e ainda sigo me aprofundando nas consequências da reprodução de estereótipos desumanizadores no cotidiano de pessoas racializadas em geral e da população negra em específico.

São justamente as imagens do homem negro em condições que descaracterizam sua aparência, aproximando-a de um animal, e a imagem da mulher negra como serviçal, que conduzem a continuidade dos meus estudos no tema. Porque estas imagens desdobram uma série de outros estereótipos que mantem a lógica de desumanização inscrita no racismo.

As representações estereotipadas na negritude não escapam nem de uma figura como Mbappé. A propósito, me parece que a insistência em reproduzir pessoas negras famosas a partir de traços severos, pronunciados, que descaracterizam essas pessoas, é uma tentativa de manter a negritude como algo para lá de exótico. Considerando o caso de Mbappé, jogador europeu de descendência africana, fica ainda mais explicito o problema, que pode não ser intencional, mas que é estrutural.

Há um sistema de crenças e práticas mobilizadas pela branquitude que circunscrevem a masculinidade negra a um lugar animalesco e incivilizado. Nem sempre aparece de forma explicita e pode dar as caras nas mais benéficas das intenções. Ele sequer prescinde de palavras, mobilizando-se costumeiramente a partir de escolhas representativas no campo das artes. Artes que quase sempre são assinadas por pessoas brancas, pois é na imaginação destas pessoas que se consolidam essas crenças.

Mbappe: nem o artilheiro da Copa do Mundo, um dos jogadores mais caros celebridade planetária, escapa do racismo brasileiro. Foto Ayman Aref/NurPhoto/AFP
Mbappe: nem o artilheiro da Copa do Mundo, um dos jogadores mais caros celebridade planetária, escapa do racismo brasileiro. Foto Ayman Aref/NurPhoto/AFP

No que diz respeito a atletas de alto nível, caso de Mbappé, apresenta-se uma série de contradições importantes. O Brasil é um país onde o futebol é celebrado com entusiasmo. É também o Brasil, apesar dos esforços para esconder essa característica, uma nação supremacista branca. Uma que sujeita homens negros ao racismo das mais diferentes formas no decorrer da sua história. É um país que consegue, ao mesmo tempo, celebrar os atletas negros do futebol e reproduzir as mais desumanizadoras piadas e os mais infames comentários sobre os mesmos atletas. A genialidade de Mbappé não passou ilesa dessa lógica.

A Copa do Mundo nos permitiu observar como isso funciona de maneiras muito variadas. Uma das críticas mais contundentes à seleção brasileira, tanto nos veículos esportivos internos quanto nos externos, evidencia a sanha da supremacia branca em controlar e domar os corpos negros masculinos. A representação dos atletas negros na mídia, no geral, invocam elementos entrais da supremacia branca e de novas dinâmicas do racismo que se constituem por frequentemente passarem despercebidas a olhares menos atentos.

A própria forma com que se entende a supremacia branca, apenas como atos extremistas de uma direita conservadora e reacionária, facilita esse mecanismo. É como se o espaço da cultura esportiva estivesse ileso a essa dinâmica, uma vez que celebra tão constantemente atletas negros, entretanto a obsessão em controlar o comportamento desses atletas também é uma forma de racismo. Sobretudo, imagens e discursos que explicitam uma superioridade masculina branca contribuem sensivelmente à naturalização da supremacia branca através do esporte.

Por mais que a charge em questão pudesse ser lida como um reconhecimento do brilhantismo de Mbappé, a maneira com que ele é retratado demonstra o quanto o racismo pode se esconder nos detalhes. Nos detalhes a respeito da representação dos corpos de homens negros. Nos detalhes que desprezam homens negros no cotidiano, mas que valorizam os homens negros como produtos de entretenimento. Nos detalhes que só admitem a aceitação dos homens negros para entreter brancos.

E as desculpas que seguem os detalhes que escapam servem apenas para fortalecer a lógica de daltonismo racial que acaba por fortalecer uma ideia de que não há racismo no Brasil. Estaríamos todos só cometendo pequenos equívocos dos quais pedimos incessantes desculpas.

Mas existem aqueles casos em que sequer as desculpas de sempre aparecem. Por mais detalhada que esteja a situação de racismo, o racista seque insistindo em manter seu pensamento e ainda se coloca no lugar de injustiçado e incompreendido. Ocorreu com o segundo veículo, o que utilizou a imagem da mammy na intenção de demonstrar o estereótipo de subordinação às tarefas domésticas na experiência de mulheres negras. O problema é a escolha de imagens desumanizadoras para mulheres negras. Para mulheres brancas, o ideário de feminilidade historicamente mobilizado pela supremacia branca servia a dizer o que era feminilidade e o que não podia ser assim considerado.

O quanto você sabe a respeito da maneira histórica que essa imagem de controle foi utilizada para subordinar mulheres negras? O quanto você realmente se interessa em buscar o conhecimento que permita que ela não mais se perpetue? O quanto a mídia está disposta a rever seus posicionamentos e admitir seus erros históricos? Nesse caso, parece que a resposta para todos esses questionamentos é muito pouco ou quase nada.

Mesmo após a detalhada e pacienciosa explicação de uma intelectual do tamanho de Taís de Sant’Anna Machado, que recentemente publicou o livro “Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil”, oriundo de sua brilhante tese de doutorado onde ela investiga justamente o histórico do trabalho de mulheres negras nas cozinhas, o veículo insistiu que talvez ela, Taís, a especialista, não tivesse entendido corretamente, não tivesse ouvido o podcast o suficiente, não fosse o suficiente. No mínimo, desrespeitoso com o trabalho de Taís e com sua generosidade em apontar o problema da representação estereotípica de mulheres negras.

No fundo, nos querem exatamente nesse lugar que cristalizou a imagem da mammy, que sempre sorri para os brancos, que nada tem a reclamar deles, que agradece toda a infinita bondade e disposição da branquitude em nos possibilitar servi-los.  Um detalhe que não nos passa mais despercebido, não para as mulheres negras; sabemos o que a branquitude está fazendo, como e por quê. Quais são suas intenções não pronunciadas disfarçadas de uma progressismo autoproclamatório que não se permite sequer ouvir quem sabe o que está dizendo.

Eu poderia aqui explicar detalhadamente todos os problemas da imagem de controle da mammy e por que é bastante racista a insistência em trazer essa figura para ilustrar o episódio de um podcast que fala do trabalho de mulheres nas cozinhas durante as festividades de final do ano; poderia. Mas não vou. Já escrevi um livro todinho sobre imagens de controle e aparentemente nada do que eu possa dizer a respeito vai convencer as boas intenções de manutenção de lógicas racistas a reverem suas posições.

Só não me peçam para considerar aliado quem não é sequer capaz de ouvir as críticas de mulheres negras. Em 2023 quero distância desse tipo de aliança. Feliz ano novo e por favor: melhorem.

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