O poeta Paulo Leminski remonta a luta de classes na Galileia, compara Jesus com Robespierre e descreve como seu caráter subversivo e utópico inspirou as grandes revoluções modernas.
Por Paulo Leminski, compartilhado de Jacobin
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Trecho extraído do livro Jesus (Brasiliense, 1984)
Jesus, reformador ou revolucionário? Essas categorias são muito modernas, filhas das Revoluções francesa, russa, mexicana, chinesa e cubana, talvez as únicas, até agora, dignas desse nome. A tomada do poder pelas classes oprimidas raras vezes (alguma?) ocorreu na História. A doutrina de Jesus, porém, tomou o poder no Império Romano, sem disparar um tiro, quer dizer, sem disparar uma flecha nem levantar uma espada.
Isso é um fato.
Como é fato que foi a burguesia quem inaugurou a idade das revoluções, com essa revolução francesa, que Lenin e Trotsky, pais da russa, chamavam A Grande Revolução. Nela, a atuação mais radical foi a do Partido Jacobino, liderado por Robespierre, dito o Incorruptível, oposto aos girondinos, de tendência moderada (1793-1794).
Durante a breve ditadura dos jacobinos, milhares de cabeças rolaram na guilhotina, condenadas pela sumária justiça revolucionária (revoluções não costumam primar pela gentileza nem pelas boas maneiras). Robespierre e os jacobinos queriam a pureza máxima do ideal revolucionário: democratização, republicanismo, secularização, em uma palavra, o racionalismo da burguesia iluminista, moldando a sociedade à imagem dos seus interesses e à semelhança dos seus negócios.
Robespierre pode parecer o paralelo mais inadequado para Jesus. Nenhum símile entre quem salvou a adúltera de apedrejamento, contra as leis de Moisés, e o advogado que, 1790 anos depois, condenou à morte, implacável, seus próprios companheiros de Partido e de militância, com o rosto de pedra de um rei assírio. Uma coisa, porém, Jesus e Robespierre têm em comum. Eles querem o exagero, a pureza de um princípio.
Nisso, são revolucionários. Apenas os métodos diferem.
Erro pensar que Jesus veio abrandar os rigores farisaicos da religião de Israel. Ele veio para tornar mais agudas as exigências dessa fé.
Tradição revolucionária
Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos. Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade dos fariseus. Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam a Lei.
Os fariseus lhe devolvem o rancor na mesma medida, classe ideologicamente dominante (o poder romano era inteligente demais para mexer na religião dos seus incontáveis súditos, pontuais pagadores de impostos, que importa que não adorem?). Influências essênias, contato com João o Batista, Jesus acelera ao máximo essa tendência de interiorização dos ritos judaicos, que já tinha começado com os profetas, no século VII a.C. O dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito.
Jesus está inventando a alma: o super-signo que todos somos “dentro”. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de todas.
Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwels, Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lenins, Trotskys, Maos, Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mins, Samoras Machel. Talvez, seja inadequado aplicar à irradiação da doutrina de Jesus o qualificativo de “revolução”, afinal, uma categoria política essencialmente moderna, com implicações não apenas ideológicas mas, sobretudo, econômicas, administrativas, sociais e pedagógicas. E bélicas. Uma categoria essencialmente laica.
A saga de Jesus só faz sentido no interior de um mundo de intensidade religiosa máxima, como o judaísmo antigo, onde as motivações da fé comandavam todos os aspectos da vida. Uma existência inimaginavelmente mais rica do que esta jângal sem grandeza, que é a vida das grandes massas nas megalópoles abortadas pela Revolução Industrial. Só um energúmeno iria pedir a um profeta da Galiléia, na época de Augusto, programas concretos de reforma agrária, projetos de participação nos lucros da empresa ou altas estratégias de tomada do poder através da organização militar das massas.
Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado (r), da pregação de Jesus. Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina.
Impossível superar esta bem-aventurança:
Felizes os pobres,
porque deles é o reino dos céus.
A contradição (binária) pobre x rico, a mais elementar de todas, Jesus viu. E fulminou, brilhante:
Mais fácil
passar um camelo
pelo buraco de uma agulha
do que um rico
entrar no reino dos céus.
O profeta era radical:
Não se pode servir
a dois senhores:
a Deus e a Mammon.
Mammon, a divindade cananéia, cultuada pelos comerciantes, que propiciava bons negócios e fortuna em dinheiro. Com Mammon, Jesus não queria parte. Mais que populismo, esse pauperismo de Jesus parece ter raízes na tradição judaica. Jesus apresenta traços ebionitas. Ebion, em hebraico, é “pobre”.
Os ebions constituíram uma seita judaica, uma habhurah, anterior a Jesus, que se transformou numa das centenas de seitas judaico-cristãs que proliferaram por todo o Mediterrâneo, depois da morte do profeta. Seu credo fundamental consistia em afirmar a santidade essencial da pobreza, da penúria de bens, da frugalidade, uma doutrina contra o ter.
O tema ebionista foi modulado muitas vezes na história do cristianismo, sempre com implicações subversivas e utópicas: Francisco de Assis, um de seus momentos mais altos. Concilio Vaticano II. Igreja dos pobres, no Terceiro Mundo. A essencial subversividade (“negatividade”) da doutrina de Jesus revela-se, porém, na própria realidade que ele anunciava, uníssono com os profetas de Israel: o iminente advento de um Reino. O Reino de Deus.
Um momento de atenção na palavra “reino”, vocábulo político, com implicações de poder, autoridade e mando. Jesus não inventou a expressão nem o tema. Já está lá em Abdias, o mais antigo dos profetas (século VII a.C).
Anti-imperialismo
OReino de Deus era a restauração da autonomia nacional do povo hebreu. Sobre isso, a autoridade romana não se equivocou, ao pregar o profeta na cruz, exemplar suplício com que os latinos advertiam os rebeldes sobre os preços em dor da sua insurreição. Esse suporte material, sócio-econômico-político, da pregação, por Jesus, de um (novo) Reino, um (outro) poder.
Nessa tradução/translação do material para o ideológico, Jesus forneceu um padrão utópico para todos os séculos por vir. As duas grandes revoluções, a Francesa e a Russa, estão carregadas de traços messiânicos de extração evangélica.
Ambas prometeram a justiça, a fraternidade, a igualdade, enfim, a perfeição, o ideograma da coisa-acabada projetada sobre o torvelinho das metamorfoses.
Natural que seja assim. Afinal, as utopias são nostálgicas, saudades de uma shangrilá/passárgada, estado de excelência que lá se quedou no passado, Idade de Ouro, comunidade de bens na horda primitiva, antes do pecado original da divisão da sociedade em classes, plenitude primitiva, paleolítica, intra-uterina, antes do pesadelo chamado História. Apokatástasis pánton, locução grega, registrada nos Atos dos Apóstolos, expressa a esperança de Jesus e da Igreja (das igrejas) Primitiva. “Restauração de todas as coisas”, mas também “integral subversão de tudo”: apocatástase.
A revolução é o apocalipse, o Juízo Final de uma ordem e de uma classe social: o cristianismo primitivo cresceu à sombra da expectativa da segunda vinda, quando Jesus, vitorioso sobre a morte, voltaria, apocalipticamente, para julgar. Ele que foi julgado e condenado pelas autoridades: o retorno do reprimido, a vendeta, o acerto de contas entre os miseráveis da terra e seus prósperos opressores e exploradores.
Nenhuma das religiões da terra foi construída em torno de um mito tão forte, tão fundo, tão básico. A única exceção, quem sabe, seria o budismo. Afinal, budismo e cristianismo têm um lugar para dialogar no tema da dor. E na nota da solidariedade. Da simpatia, da compaixão. Por aí, budismo e cristianismo, também, podem conversar, ainda, com o comunismo, cujas metas e mitos guardam tantos parentescos com as vivências mais fundamentais de um príncipe do Nepal chamado Buda e de um “rabi” hebreu, filho de um carpinteiro, chamado Jesus.
A força política da ideia de Jesus, porém, está no estabelecimento de um ultra/imite.
Amar os inimigos?
Vender tudo e dar aos pobres?
Ser “prudente como as serpentes e simples como as pombas”?
O programa de vida proposto por Jesus é, rigorosamente, impossível. Nenhuma das igrejas que vieram depois invocando seu nome e cultuando sua doutrina o realizou.
Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogroms e as guerras de religião entre católicos e protestantes, que ensanguentaram a Europa nos séculos XVI e XVII. O programa de Jesus é uma utopia.
Curioso que, na frondosa bibliografia sobre os socialismos utópicos, nunca apareça a doutrina de Jesus como uma das mais radicais.
Sobre os autores
PAULO LEMINSKI
é considerado um dos poetas mais importantes da segunda metade do século XX no Brasil. Sua produção se estendeu ao longo de vinte e cinco anos e foi marcada pela Invenção na linguagem contemporânea brasileira. Entre suas obras mais importantes estão Catatau (1975), Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980) e Caprichos & relaxos (1983). Escreveu as biografias de Jesus, Trotsky, Bashô e Cruz & Souza.