Há um cheiro de ação coordenada entre a decisão do ministro Gilmar Mendes que abriu espaço para o futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva para ultrapassar o teto de gasto no pagamento do Bolsa Família e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional o orçamento secreto. Na véspera, Gilmar Mendes preparou o terreno para diminuir o espaço de chantagem do Congresso – leia-se especialmente o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). No dia seguinte, a Corte derrubou o principal instrumento de poder do mesmo Lira. A tabelinha ficou clara. Resta, porém, saber se Lira agora vai aceitar quieto o drible que levou, ou se não vai reagir e apelar para uma canelada.
Por Rudolfo Lago, compartilhado de Congresso em Foco
Relembremos todos os capítulos. O presidente Jair Bolsonaro, cujo mandato se encerra daqui a alguns dias, enviou para o Congresso uma proposta de orçamento capenga em vários aspectos. Ela não previa recursos para a manutenção do pagamento do Auxílio Brasil no valor de R$ 600. Coisa que ele mesmo prometia na campanha. Ou seja, se Bolsonaro vencesse a eleição, agora certamente estaria havendo a mesma discussão para ir atrás do dinheiro. Eleito, Lula negocia, então, com o Congresso uma proposta de emenda constitucional que autorizasse o gasto com o programa social, que voltará a se chamar Bolsa Família, além do limite do teto de gastos.
A PEC passa com facilidade no Senado. Mas começa a emperrar na Câmara. Principalmente porque, ao mesmo tempo, o Supremo julgava se era constitucional ou não o orçamento secreto, cuja chave do cofre pertence a Arthur Lira. A PEC começa a patinar, porque claramente Lira a condiciona à manutenção do orçamento secreto. Nas conversas com Lula, deixa claro que ele poderia criar dificuldades para a aprovação da PEC caso perdesse o enorme instrumento de poder que tem com o orçamento secreto.
Então, na semana passada primeiro a Câmara adia a aprovação da PEC. E o Supremo adia o julgamento do orçamento secreto com o placar de 5 a 4, faltando os votos de Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Ao pedir o adiamento do julgamento, os dois dão a sensação de que seguiriam a ideia de dizer que o orçamento secreto era constitucional, desde que ficasse mais transparente. O Congresso corre, então, para aprovar uma nova regra que parecia ir nesse sentido.
Então, Gilmar Mendes no domingo entrega uma decisão que garante ao novo governo um plano B para pagar o Bolsa Família mesmo que a PEC seja rejeitada. A decisão de Gilmar garante os recursos pelo menos para o primeiro ano de governo. Ou seja, Gilmar Mendes esvaziou o instrumento de barganha de Lira: se o Congresso não aprovar a PEC da Transição, Lula ainda tem agora a possibilidade de pagar o auxílio social.
O STF retoma o julgamento do orçamento secreto, e Lewandowski surpreende votando também pela inconstitucionalidade do orçamento secreto. Estava formada a maioria. O STF julga o orçamento secreto inconstitucional por 6 a 5.
Se Lira retaliar reprovando a PEC da Transição, isso agora terá para o novo governo um efeito menor. O governo ainda quer aprovar a PEC porque gostaria de ter um espaço maior que o recurso do Bolsa Família para trabalhar no orçamento. E a PEC garante isso. Mas o instrumento de chantagem perdeu imensamente a sua força.
O risco disso tudo é que isso pode encerrar o capítulo, mas certamente não vai encerrar a novela. É quase impossível imaginar que Arthur Lira irá aceitar tal situação passivamente. É quase impossível imaginar que ele irá acreditar que Lula não tenha se envolvido na solução do STF, ainda que Lula jure de pé juntos que não teve nada com isso.
Arthur Lira não tem cara de que tem espírito esportista e de que saiba perder. O ano caminha para terminar com uma fumaça de vingança no ar…
AUTORIA
RUDOLFO LAGO Diretor do Congresso em Foco Análise. Formado pela UnB, passou pelas principais redações do país. Responsável por furos como o dos anões do orçamento e o que levou à cassação de Luiz Estevão. Ganhador do Prêmio Esso.rudolfo@congressoemfoco.com.br