Por Paulo Hebmüller, Carta Capital –
Colunista que deixou o “Zero Hora” lança livro no qual discute a atuação da imprensa. “Há uma crise profunda na política, e a mídia é parte disso”, diz
Mendes: o discurso de ódio está no subterrâneo do discurso da própria imprensa
Depois de 27 anos de trabalho na redação, em abril de 2016 o jornalista Moisés Mendes pediu demissão de Zero Hora – o mais importante jornal do grupo RBS, afiliado da Rede Globo no Rio Grande do Sul. O estopim para a saída foi a redução da periodicidade da coluna de opinião que Mendes assinava: de diária, foi limitada a apenas três dias da semana.
O colunista também perdeu o espaço nobre do domingo, porque Zero Hora deixou de circular nesse dia com a criação da chamada “superedição” de fim de semana, distribuída aos sábados.
O jornalista diz não se surpreender com o corte no espaço que ocupava, porque acredita que o “alçapão” para preparar a sua saída já estava sendo armado. “É como um casamento ou uma relação de amizade: tem uma hora em que você estabelece um limite. Eu estabeleci um limite em relação à RBS e fui embora, até porque eles iriam me pegar mais adiante”, avalia.
Moisés Mendes e outro colunista do jornal haviam criado, embora involuntariamente, uma espécie de “Gre-nal” de opinião, “ele à direita e eu à esquerda, que é uma posição que sempre tive”, explica.
Mas os tempos andam áridos para o exercício da pluralidade na imprensa brasileira: “Na Zero Hora e em todos os grandes jornais brasileiros, a opção pelo ultraconservadorismo é uma coisa impressionante”, diz. Para Mendes, o debate sobre o oportuno conceito de pós-verdade, um dos termos-chave de 2016, não pode eximir a imprensa. “A internet mente como as pessoas sempre fizeram no mundo, mas a imprensa institucionalizada não pode mentir.”
Aos 62 anos, o jornalista – que começou a trabalhar em redações do interior gaúcho aos 17 – publica uma coluna no jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul, e mantém um blog “porque escrever é uma cachaça e não é possível parar”.
Também é convidado frequente em debates sobre jornalismo e política (“depois que saí da Zero Hora, virei o ‘Homem Elefante’: ninguém queria o meu trabalho, mas queriam me ver e me ouvir”, brinca). No final do ano, lançou uma reunião de crônicas no livro Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim, 160p., R$ 39,90). Sobre o livro e os rumos da imprensa e do País, Moisés Mendes concedeu em Porto Alegre a seguinte entrevista:
CartaCapital: A imprensa brasileira vive o seu pior momento?
Moisés Mendes – Na Zero Hora e em todos os grandes jornais brasileiros, a opção pelo ultraconservadorismo é uma coisa impressionante. Um dia escrevi que, na época da ditadura, os patrões mandavam os jornalistas escreverem a favor do golpe; agora há jornalistas dizendo aos patrões para serem mais golpistas do que já são.
A gente pega a capa d’O Globo, por exemplo, vê as chamadas para quatro colunistas ou formadores de opinião do jornal e os quatro são conservadores, para não dizer reacionários. Na Folha, escapa o Janio de Freitas. É uma coisa meio assustadora.
O jornalismo fez uma escolha conservadora para preservar o público que o sustenta e que mantém os jornais vivos, e esse público é conservador. Há uma crise profunda no ambiente político, e a mídia é parte disso ao fazer a opção pelo golpe.
CartaCapital: Num dos textos do livro, você diz que “um jornal tem a missão de ser incisivo na defesa da liberdade”. Hoje, os jornais são incisivos na defesa do golpe, do ajuste fiscal, das tais medidas de austeridade…
MM: O discurso conservador prevalece na economia, na política etc. Não houve nenhum editorial dos grandes jornais dizendo categoricamente que o Eduardo Cunha não podia comandar o processo de impeachment. Deixaram que ele fizesse isso, porque era o serviço a ser prestado. As grandes missões do jornalismo estão todas abaladas no Brasil: a liberdade, a pluralidade, a defesa dos direitos, os princípios liberais. Onde estão os liberais brasileiros?
Há uma crise da alma dos jornais. Antigamente, as empresas eram comandadas por jornalistas – conservadores, mas jornalistas, como Breno Caldas no velho Correio do Povo(de Porto Alegre), ou os Mesquita no Estadão, que acabaram se voltando contra a ditadura. Hoje a coisa desandou. Dizem que as montadoras perderam a mão no seu negócio quando os seus executivos já não entendiam mais de carro e passaram a prevalecer os designers. Nos jornais aconteceu a mesma coisa.
CC: Você vê possibilidades de renovação com iniciativas como as novas agências independentes, que ainda enfrentam grandes desafios para se financiar?
MM: Sou um otimista com o jornalismo que virá mais adiante. Acho que o potencial da internet ainda não foi aproveitado, principalmente pelas novas gerações. Estive na ocupação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, numa conversa muito boa com um grupo de professores e a gurizada, uma das conclusões a que chegamos é que os jornalistas em formação ainda não estão produzindo o que poderiam produzir.
Hoje não é preciso pedir licença para ninguém, não existe o custo de impressão e distribuição, não tem patrão. Mas eles ainda não estão fazendo o que poderiam. Mesmo na mídia alternativa, os chamados “blogs sujos” ficam devendo mais informação. Palpite qualquer um dá, eu mesmo dou no meu blog, mas poucos produzem informação. E como eles vão sobreviver agora, sem o dinheiro do governo?
CC: Os jovens jornalistas que chegam às redações já estão mais “adestrados” para o discurso do conservadorismo ou lutam para fazer uma contraposição ideológica?
Mendes – Sou da geração que, durante a ditadura, construiu nas redações a utopia de que o jornalismo tinha que lutar pela democracia. Eu era um jornalista militante com ficha em partido (o então MDB) porque achava isso importante. Pergunte agora aos jovens o que eles pensam da sua missão no jornalismo: escrever bem, fazer o trabalho bem feito – mas sem utopia nenhuma.
Eles querem estudar no exterior. Na Zero Hora, muitos já foram e outros estão com as malas prontas. Não há mais aquela ideia de fazer carreira na redação. Antes as pessoas diziam com orgulho: “quero ser editor da Zero Hora”. Agora já não dizem isso, querem é ir embora. É um pessoal que está na redação fazendo uma passagem, porque sabe que o jornalismo não tem mais a função que já teve.
CC: A própria perspectiva que as empresas oferecem também não é a mesma.
Mendes – Claro! Eu trabalhei em vários jornais do interior que sempre estavam a perigo, mas a gente sabia que podia ir para outro lugar que nos seguraria. Hoje a gurizada vê as redações encolhendo, olha para o lado sem enxergar alternativa e pensa: para onde eu vou? Mas acho que eles farão alguma coisa que nós não fizemos. Logo à frente eles vão inventar um jornalismo “de garagem” que vai ser o Uber do jornalismo.
CC: Alguns dos textos do livro citam casos de violência que remetem à cultura do ódio e da intolerância que temos vivido no país. Você acha que a imprensa tem um papel nisso?
MM: Tem. Há colunistas que contribuem para esse discurso, alguns de forma dissimulada e outros nem tanto. Não é preciso apoiar abertamente o Bolsonaro, por exemplo, mas há uma proteção a esse tipo de pensamento. Você pode escrever uma história sobre uma professora da sua infância e usar o texto para esculhambar as feministas, falar mal de uma deputada etc. Essa é uma face que o jornalismo revela agora que não revelou na ditadura.
O jornalismo golpista de direita e pró-milicos não explicitava esse tipo de ponto de vista reacionário que temos hoje na área dos costumes, como a desqualificação da mulher e do negro, ou o fato de cair de pau nos pobres em relação ao Bolsa-Família – embora o dinheiro público possa socorrer os empresários por décadas.
O medo das políticas afirmativas que levam o cidadão a prosperar, o medo de viajar de avião ao lado do negro ou de haver negros na universidade – tudo isso está no subterrâneo do discurso da própria imprensa. O jornalismo contribuiu para a questão da intolerância e do ódio de uma forma que eu nunca tinha visto.
CC: Um dos termos do ano que passou é a pós-verdade. Você acha que a cobertura em torno do impeachment é um exemplo dela?
MM: Claro. Daqui a alguns anos, quando olharmos com mais distanciamento, vamos ver que é tudo muito absurdo. A retórica política contamina a imprensa e os jornalistas começam a reproduzir esse discurso. Como é que ninguém questiona de forma categórica a posição do Cunha na condução do processo?
Como o Supremo se comporta daquela forma covarde e o Ricardo Lewandowski (então presidente do STF) assume o julgamento no Senado, presidindo a farsa do impeachment? Eu fiquei pensando que algum dia o Lewandowski iria acordar e dizer para a mulher dele: “não vou!”
Na discussão da pós-verdade há a história de que, no meio dessa desinformação, o jornalismo tradicional vai sobreviver por ser o “certificador”. Acho que essa é uma falsa questão. A mentira na internet é a que sempre circulou na mesa de bar ou no churrasco de domingo, mas agora está potencializada por um meio.
A verdade e a mentira na internet são as mesmas de uma conversa em qualquer lugar. A questão real é discutir o que é verdade ou mentira na grande imprensa, indo além de entregar para a capacidade de cada um a tarefa de discernir o que é certo e o que é errado.
Vimos especialmente na última eleição que o que prevaleceu foi a ignorância, que as pessoas são mal-informadas e têm formação política precária. A grande imprensa sabe que é fácil manipular esse público desinformado. A pós-verdade a ser discutida é a da grande imprensa, não a da internet. A internet mente como as pessoas sempre fizeram no mundo, mas a imprensa institucionalizada não pode mentir.
CC: E ela está interessada em não mentir?
MM: Não poderia mentir. A questão é que o jornalismo perdeu as grandes missões que tinha. No Brasil, durante a ditadura, a própria imprensa conservadora acabou aderindo à causa da luta pela democracia. A pergunta é: qual a grande missão da imprensa brasileira hoje? A última foi derrubar a Dilma… Agora não sabem o que fazer: se abandonam o Temer ou não, se apostam numa eleição indireta – e, numa eleição direta, quem poderia salvar a direita? É uma situação complicada.
O jornalismo não tem nenhum apelo para vender a ninguém e não tem missão nenhuma a oferecer. O Lúcio Flávio Pinto (jornalista paraense) disse num recente depoimento que quem quiser saber sobre as grandes questões ambientais brasileiras nos anos 70 – quando a imprensa começou a falar, por exemplo, da devastação da Amazônia – vai ter que pesquisar no arquivo do Estadão.
Os jornais tinham essa missão: o debate dos grandes temas passava pelo jornalismo. O que o Lúcio Flávio quis dizer, com orgulho, é que ele participou disso e escreveu n’O Estado de S. Paulo coisas que ninguém mais escreveu sobre as questões ambientais. Mas hoje o Estadão pode dizer que tem alguma coisa que os outros não têm em relação a quê? Ao golpe? É triste isso.
CC: Na crônica que dá título ao livro, você faz considerações sobre o Uruguai e o ex-presidente José Mujica. Em que medida o Uruguai poderia ser um modelo para o Brasil?
MM: Conheci o Mujica em 2010, quando o Lula (então presidente) foi a Livramento (cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai) se encontrar com ele. Depois da entrevista o Lula foi embora e o Mujica ficou por ali conversando com os jornalistas. Eu esperava um “ogro”, alguém com um discurso de ex-guerrilheiro e tal, mas ele veio com uma fala sofisticada que me impressionou.
Minha relação com o Uruguai é romântica e afetiva. Quando trabalhei em Livramento, de 1973 a 75, morei em Rivera, no Uruguai. Eram tempos de ditadura aqui e lá, e fui corrido de Rivera porque não tinha documento de residência. Acho o uruguaio uma figura humana fantástica, mas não vejo o país como possibilidade de modelo. É uma sociedade mais homogênea, com uma educação muito boa, mas lá a dimensão dos problemas é de outra escala.
O que vejo, mais como sonho, é que eles conseguiram formar a Frente Ampla (coalizão de esquerda criada em 1971 que governa o país desde 2005, com a primeira eleição de Tabaré Vásquez). Aqui, como poderíamos fazer isso? Uma frente de quem com quem?