Em 1990, quando fui ao Paraná fazer a campanha de governador de Roberto Requião, descobri na prática como o Judiciário fazia o papel que historicamente os jagunços realizaram para o latifúndio: numa sentença, conseguiam o despejo de famílias que viveram à décadas em uma terra de interesse dos fazendeiros. Nos primórdios, eles mandavam a jagunçada expulsar na base da bala e muitos morreram e tiveram seus corpos jogados no rio. Agora não era necessário utilizar a violência física, apenas o poder judicial.
Por Simão Zygband, compartilhado de Construir Resistência
A minha matéria para o horário eleitoral mostrou exatamente isso. Uma família expulsa de suas terras por ordem de um juiz, que foi obrigada a se refugiar na periferia da cidade de Assis Chateaubriand. A colonizadora só completou o serviço e tocou fogo na casa dos colonos expulsos.
Quando editei o jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, fiz uma matéria em 2015 com o falecido Paulo Henrique Amorim, mostrando como a Justiça estava a serviço dos interesses das grandes empresas de Comunicação e de poderosos grupos econômicos que praticamente conseguiam calar os profissionais que ousaram desafiar o bloqueio informativo da mídia hegemônica (empresarial ou privada, como preferirem).
Paulo Henrique Amorim era vítima constante da chamada Lawfare, o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política, como bem caracterizou a advogada Tânia Mandarino, membro do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia, que assim escreveu sobre os constantes processos contra o jornalista: “Paulo Henrique Amorim foi alvo fatal dessa prática cruel e perversa, típica de democracias em ruína e estados ditatoriais. A tortura se pratica hoje de forma asséptica e cirúrgica nos bastidores dos cartórios judiciais, sob as togas de setores do judiciário, novos fleurys (o torturador delegado Fleury), travestidos de juízas e juízes”. Consta que ele faleceu desgostoso por ser condenado a indenizar seus algozes. ” O coração de PHA não resistiu a tanta tortura e partiu”, avaliou Tânia.
A mais nova personagem de um processo de tentativa de censura contra a liberdade de imprensa e de expressão está se realizando contra o jornalista Gilberto Nascimento, colaborador do site The Intercept, que tem sido vítima de litigância de má fé e lawfare praticados pela Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) desde que publicou uma matéria intitulada “Igreja Bilionária”, em 20 de julho de 2022.
A reportagem revelou que a congregação de Edir Macedo amealhou 33 bilhões de reais em doações bancárias entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de julho de 2015 – em valores corrigidos pela inflação, o valor ultrapassa R$ 42 bilhões.
A pedido da Iurd foi instaurado um inquérito policial determinado pela 4ª Vara Criminal de Ribeirão Preto, a propósito de reportagem de Nascimento. A matéria veiculada pelo The Intercept baseia-se em documentação do Ministério Público Estadual (MPE-SP), que mostra que, em apenas quatro anos e meio, entre janeiro de 2011 e julho de 2015, a Igreja Universal recebeu doações bancárias num montante de R$ 33 bilhões (em valores de hoje, R$ 42 bilhões).
A Iurd alega quebra de sigilo no processo, mas não contesta os dados publicados. Gilberto Nascimento, um jornalista querido e respeitado por toda a categoria, tem mais de 40 anos de experiência como repórter de política, religião e direitos humanos. Com passagens por veículos como Folha de S.Paulo, O Globo, CartaCapital, IstoÉ e até mesmo a TV Record, coleciona mais de uma dezena de prêmios de jornalismo, entre eles o Vladimir Herzog, o Ayrton Senna e o Simon Bolívar. É defendido publicamente por vários de seus colegas, além de entidades como o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Abraji e ABI.
“Ao tomar medidas judiciais contra ele e contra The Intercept, a igreja procura intimidá-los e cercear a liberdade de investigação jornalística. A atitude da Iurd representa um ataque frontal ao jornalismo, e como tal será tratada por nós”, ressalta o texto do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
“A intenção da Igreja Universal com esse pedido de inquérito policial é nos intimidar, amedrontar e tentar impedir que levemos ao público informações de interesse de toda a sociedade”, revela Gilberto Nascimento. “Os valores apurados estão em um documento oficial do Ministério Público de São Paulo. Eu tive acesso a essas informações e o jornalista tem direito ao sigilo da fonte. A Constituição e decisões recentes do Supremo Tribunal Federal garantem esse direito aos jornalistas”, argumenta ele.
Privataria Tucana
Outro caso escandaloso de utilização do Judiciário como instrumento de censura a jornalistas ocorreu há pouco mais de 10 anos com o jornalista investigativo Amaury Ribeiro Jr., autor do livro ‘A Privataria Tucana’. Ele foi condenado em primeira instância a 7 anos e 10 meses de prisão por ter obtido “dados protegidos por sigilo fiscal” de pessoas ligadas ao então senador José Serra (PSDB-SP), entre elas, a filha Veronica Serra, e Eduardo Jorge, ex-vice-presidente do PSDB.
A acusação alegou que ele subornou funcionários da Receita Federal para obter as informações. No processo, Amaury alega que “jamais pagaria pela obtenção de dados fiscais sigilosos de qualquer cidadão”. O jornalista recorreu da decisão. É provável que o processo ainda não esteja extinto, mas não foi preso injustamente. O Privataria Tucana foi lançado em 2010 e chegou a ser finalista do Prêmio Jabuti.
A publicação revela corrupção nas privatizações de estatais durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e tem Serra como um dos personagens principais.