Por René Ruschel, compartilhado de Carta Capital –
Edevaldo Medeiros visitou Lula na cadeia e ousou criticar o Tribunal do Santo Ofício
O que surpreende é que a morosidade costumeira dos tribunais de Justiça e seus tentáculos, neste caso, se superou. A visita ocorreu em 21 de março de 2019. A representação contra os juízes deu-se no dia seguinte, por determinação do corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins. Eram duas as acusações: prática de ato político-partidário e críticas a decisão judicial. A Corregedoria do TRF3 opinou pelo arquivamento, mas o MPF não desistiu. Após 90 dias, voltou à carga.
Oito procuradores apresentaram nova representação. Desta vez, apenas contra Medeiros. Reiteravam a visita feita a Lula e a entrevista ao jornal, além das decisões proferidas por ele nos processos cíveis e criminais nos quais o MPF é parte. Ora, a imparcialidade e independência de interpretação do magistrado são princípios intangíveis para dar garantia e sustentação ao Estado de Direito. No procedimento disciplinar recém-instaurado, o que será julgado é exatamente o modo como o magistrado interpreta as leis penais e civis nos processos em que o MPF é parte. “Sou juiz há 13 anos e sempre adotei a linha de interpretação jurídica chamada ‘garantista’, mas só agora o MPF se incomodou. Por que será?”, indaga. Seria mais um caso de lawfare no Judiciário nativo?
À época da entrevista ao jornal, Medeiros falou sobre o caráter político da operação Lava Jato desde sua deflagração, analisou o papel do ex-juiz Sérgio Moro no processo e fez uma defesa da função do Supremo Tribunal Federal como “guardião da Constituição” na atual conjuntura. Afirmou que tinha muita reticência em relação às investigações que a polícia costuma dar o nome de “operações” – sejam lá quais forem. Criticou o caráter midiático delas, uma espécie de propaganda da Polícia Federal. “O Código de Processo Penal não trabalha com essa entidade midiática chamada ‘operação’, mas sim com investigação, que é a linguagem jurídica”, observa o magistrado. “A investigação é feita dentro de um processo penal e depois se torna criminal. Não simpatizo com isso e, em minhas decisões, nunca faço referência a esses nomes. Prefiro citar o número do inquérito, do processo.”
Medeiros criticou, ainda, a figura de pop star protagonizada pelo então juiz Sérgio Moro. Afirmou que, na democracia, quem deve brilhar são as instituições por cumprirem as leis. Para ele, a sociedade brasileira é tão carente que acaba se apegando a magistrados justiceiros. “A figura do juiz combatente é contrária à Constituição, porque juiz não tem que combater a criminalidade. Essa é a tarefa da Polícia e do Ministério Público”, afirma. “O juiz tem de julgar. Quando toma a frente de uma investigação ou se torna punitivista, perde a essência da magistratura, que é justamente a imparcialidade.”
Filho de um operário baiano e de uma faxineira catarinense, Medeiros nasceu em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo. Aprendeu a se indignar ainda garoto. Dos 13 aos 16 anos trabalhou como açougueiro e foi lá, no “Açougue do Zé”, que pela primeira vez viu e sentiu a força e a opressão se fazerem valer. Era o auge do Plano Cruzado, decretado pelo então presidente José Sarney, quando os preços tabelados não eram mais obedecidos. Um grupo de policiais civis chegou ao estabelecimento para fiscalizar e percebeu que havia irregularidades na tabela de venda da carne. “Chegaram de arma em punho e colocaram sobre o balcão. Ameaçaram a todos de prisão. Na verdade, queriam só extorquir. Exigiram que os preços fossem diminuídos e obrigaram o proprietário a vender a eles parte do estoque por preços abaixo do custo.”
“Precisamos entender que o combate ao crime se faz com distribuição de riqueza, e não com opressão”, diz o magistrado
Graduado pela Universidade São Francisco, teve como referência acadêmica o professor e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Carlos Vico Mañas. Nas primeiras aulas de Direito Penal, lembra o magistrado, ao ouvi-lo falar em direitos humanos, direitos fundamentais, Revolução Francesa e as recorrentes citações das obras e do pensamento de Cesare Beccaria, tinha a nítida sensação de que o mestre defendia bandidos. “Eu era jovem, sabia muito pouco, mas aprendi a refletir e procurei ler a maioria das obras que ele indicava”, recorda. “Isso foi fundamental na minha formação.”
Prestou concurso na Procuradoria do Estado de São Paulo e foi designado para a Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal, um trabalho semelhante ao desempenhado pela Defensoria Pública. “O pouco tempo que passei lá foi de riquíssima aprendizagem. Eu não tinha uma Vara fixa onde trabalhar, então cada dia fazia audiência com um juiz diferente. Isso me deu a oportunidade de escolher o juiz que eu queria ser ou não.” Em janeiro de 2007, ingressou na magistratura federal.
Cético, Medeiros acredita que o mundo vive um recrudescimento de ideias totalitárias. “Ainda não temos notícia de implantação de regime fascista ou nazista na América Latina, mas assistimos à ascensão de ideias próprias desses regimes, como racismo, homofobia, ódio religioso, principalmente contra as religiões de matriz africana, opressão aos indígenas e na questão de gênero, além da invocação de Deus em assuntos políticos.”
No Brasil atual, o que se vê, segundo o magistrado, é a tentativa de enfraquecimento dos direitos individuais por meio de projetos de leis que, em última análise, colocarão o povo negro e pobre em maior vulnerabilidade. “Precisamos entender que o combate ao crime se faz com distribuição de riqueza e educação, e não com opressão. Não podemos esquecer que o Brasil é recordista em má distribuição de renda.” Medeiros aguarda o julgamento de seu processo com tranquilidade. “O Tribunal conta com um excelente quadro de desembargadores. Certamente irão me absolver quando entenderem o que aconteceu.”