O filme Labirinto do Silêncio[1], de Giulio Ricciarelli, relata o caminho investigativo e judiciário que provoca a abertura na Alemanha, no ano de 1963, do conhecido processo Frankfurt contra torturadores do campo de Auschwitz, dezoito anos após o processo de Nuremberg. Foi o primeiro processo que aconteceu na justiça alemã (não empreendido pelos aliados) permitindo à justiça desse País de voltar-se aos acontecimentos da Segunda Guerra mundial e de sensibilizar a sociedade alemã sobre as atrocidades cometidas pelo III Reich. O filme explora a catarse feita pelos alemães com relação ao passado nazista e quanto ao caráter ainda muito incompleto da desnazificação.
Como relatado pela co-cenarista Elisabeth Barthel[2] o filme trata de uma reconstituição histórica realizada com muito cuidado e apoiada sobre a trágica trama real que associa indivíduos que verdadeiramente existiram. Ele dá destaque a Fritz Bauer (1903-1968), procurador geral à época do início do processo, ao jornalista Thomas Gnielka (1928-1965) e ao militante da memória Hermann Langbein (1912-1995). O filme envolve, por outro lado, personagens fictícios como o jovem procurador Johann Radmann , a síntese ficcional de inúmeros membros da equipe de Fritz Bauer.
No início dos anos 50 o Parlamento alemão revogou os decretos editados pelas potências aliadas e abandonou a persecução dos crimes cometidos pelos nazistas. Em 1949, quando foi criada República Federal da Alemanha, empreendeu-se uma campanha de reintegração massiva dos alemães, sob o esquecimento do período nazista. Assim, de 1952 a 1958, a justiça alemã condenou somente um pequeno número de pessoas pelos assassinatos cometidos sob o III Reich.
Esse quadro começa a mudar a partir do fim dos anos 50 e a opinião pública alemã reconhece que boa parte dos crimes cometidos pelos nazistas resta impune. Em 1958 as autoridades alemãs decidem criar uma agência federal encarregada de investigar os crimes nazistas praticados fora da Alemanha. Essa agência desempenha um papel fundamental para a multiplicação das investigações e, mediante provas suficientes, encaminhava ao procurador os elementos para a abertura dos processos, o que conduziu Fritz Bauer a tomar medidas concretas contra os agentes alemães.
O filme mostra que, em um primeiro momento a maioria da população era hostil a esse tipo de processo porque, ao final da guerra, se estimou que havia 7,5 milhões de adeptos ao nazismo na Alemanha. No processo Frankfurt, dos 22 acusados, 6 foram condenados à prisão perpétua. Esse resultado foi saudado pela imprensa e hoje o passado nazista é evocado sem dificuldades e, com frequência, tem sido lembrado nos teatros, na literatura e no cinema alemães. A chanceler Angela Merkel, por ocasião dos 70 anos da liberação do campo de Auschwitz reconheceu a responsabilidade “eterna” da Alemanha pela Shoah[3].
A referência a esse filme nos conduz a refletir sobre as diferentes performances e práticas da justiça transicional[4] que surgem após regimes autoritários. A semana que termina foi plena de comemorações pela passagem dos 36 anos da Lei de Anistia do Brasil. A “Semana da Anistia 2015”[5] teve atos públicos em 11 capitais de Estados brasileiros e em mais de uma dezena de cidades. Há que ser destacado, assim, o relevante papel da Comissão de Anistia para a consolidação da justiça de transição em nosso País e a abertura da sociedade brasileira para discutir problemas que são “nossos”.
Além dela, a Comissão Nacional da Verdade[6], instituída por lei federal no ano de 2012, tem desenvolvido importantes atividades para apuração dos fatos que significaram graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil entre os anos de 1946 e 1988. De fato, há de ser reconhecida a propriedade das palavras de um de seus Conselheiros, o Prof. Pedro Dallari[7], ao afirmar que o trabalho da CNV deve ser entendido como um “processo” que projeta influência sobre a sociedade como um todo. A existência no Brasil de Comissões da Verdade estaduais, municipais, setoriais e também aquelas criadas internamente em Universidades públicas confirmam o grau de sensibilidade e de maturidade da sociedade brasileira para acertar as contas com o passado recente.
Embora seja um processo complexo, a justiça de transição busca em cada situação particular vivida pelas sociedades de diferentes Estados, equilibrar as limitações materiais e as ameaças à estabilidade conquistada por esses últimos em termos de efetivação de princípios democráticos após o fim de regimes autoritários. A imposição de responsabilidade aos autores de graves violações aos direitos humanos e a satisfação das reivindicações das vítimas e de seus familiares são apenas duas das múltiplas missões impostas à justiça transicional. O lançamento, na semana que passou, de um curso virtual sobre “Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina: o Direito Achado na Rua”[8] fruto da parceria entre a Comissão de Anistia e a Universidade de Brasília, é a evidência dos largos passos dados não apenas em favor da “memória, verdade e justiça” no Brasil quanto também sobre as condições de possibilidade de pensar nossa democratização.
Há de ser reconhecido que em muitos países os processos transicionais foram desenvolvidos de maneira distinta, levando-se em conta as realidades específicas do contexto onde a transição se estabelece. O filme referido acima mostra essas diferenças, no que é acompanhado por muitos outros produzidos no Brasil[9] e pelo cinema internacional[10]. Uma das fortes preocupações sempre foi a de evitar o risco de repetição das violências ou, até mesmo, de golpes de Estado. Também em muitos lugares, a adoção de medidas alternativas de justiça de transição provocou a insatisfação das vítimas que, em geral, buscam a responsabilização dos culpados de maneira completa e imediata.
Porém, se tal objetivo é compreensível, invariavelmente, deve ser orientado para que se entenda que as medidas transicionais devem respeitar os princípios do Estado democrático de direito, como o direito a um juiz imparcial e independente, a um processo equitativo em que seja respeitado o devido processo legal, o direito à defesa, à produção de provas e ao recurso pertinente, a fim de evitar que os julgamentos ou as medidas alternativas sejam transformados em “processos espetáculos”, como já denunciara Hannah Arendt com relação ao processo de Eichmann.
Assim, a fim de manter sua legitimidade e sua autoridade, o sistema de justiça deve conduzir os casos vinculados à justiça de transição com independência e imparcialidade, não apenas para garantir o julgamento democrático dos autores dos crimes contra os direitos humanos mas, também, para que a reconstrução da democracia ocorra sobre bases sólidas. Poderíamos pensar que nesse caso, as vítimas, que buscam ardorosamente a reparação, sairiam prejudicadas. Não. Trata-se de não sucumbir ao discurso fácil que separa os grupos de maneira estigmatizada.Toda medida que possa traduzir-se em vingança ou em uma justiça de vencedores – acusação lançada sobre o julgamento de Nuremberg – deve ser evitada.
A justiça de transição, ao contrário do que afirmam seus detratores, é uma passagem necessária para que uma sociedade possa virar a página da história depois de conhecê-la. É que as experiências mostram que as gerações futuras, pós períodos autoritários, podem ser vítimas da falta de acerto de contas com o passado. Nesse sentido, mais uma vez a arte interpreta bem a vida, como mostrou o filme Honeymoons[11]. O trabalho de resgate e preservação da memória é indispensável para retirar as gerações presentes da ignorância e, até mesmo, de uma condição de discriminação, quanto livrar as gerações que foram vítimas, dos pesadelos provocados pelas ações do passado. Mas, sobretudo, ela serve para educar a não repetir os devastadores quadros de violência.
Com efeito, o direito internacional dos direitos humanos está diretamente ligado aos contextos da justiça de transição. Como referido, os compromissos assumidos pelas democracias em efetivar a justiça de transição podem tomar caminhos variados. Desse modo, seja pela via do direito penal ou pela via das medidas alternativas, o direito internacional oferece fortes orientações para a prática da justiça de transição.
Várias convenções especiais[12] protetivas dos direitos do homem determinam aos Estados a obrigação de responsabilizar os autores de crimes internacionais. O Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 2002, estabelece aos Estados signatários a obrigação de investiga-los e de responsabilizá-los.
Além do dever de investigar, várias medidas têm sido impostas aos Estados pelos tribunais de direitos do homem para proteger o direito das vítimas. Os particularismos jurisprudenciais da Corte Interamericana de Direitos Humanos, presentes no julgamento de vários casos concretos que envolveram países da América Latina, podem ser identificados em um caso paradigma. Assim, em Velasquez Rodrigues vs. Honduras[13] a Corte disse que os Estados“devem adotar todas medidas para investigar os crimes cometidos em violação da Convenção Americana, para identificar os responsáveis e impor as medidas de punição a fim de assegurar às vítimas a adequada compensação”.
Inúmeros autores indicam que essas medidas são as melhores práticas contra a impunidade, segundo o direito convencional e que impõem aos Estados, então, a obrigação de investigar, julgar e condenar os responsáveis, tal como pode ser lido na última decisão da CIDH sobre justiça de transição e que envolveu o Brasil no caso “Araguaia”[14]. As recomendações apresentadas pela Corte estão em sintonia com as razões de decidir em outros casos anteriores que determinam sejam asseguradas às vítimas vias de recurso eficazes (a); de que a reparação seja adequada (b); de que seja garantido o direito de conhecer a verdade sobre as violações(c) e; de que sejam adotadas todas as medidas para que as violações aos direitos humanos não sejam repetidas (d).
Essas são consideradas por muitos como as medidas mais adequadas para garantir um standard elevado de reparações e que se alinham à normatividade na matéria, impondo aos Estados a adoção de medidas plurais para a responsabilização pelos crimes, a reparação das violações e a não repetição.
Se não há uma universalidade de soluções que, aliás, não seria factível, tampouco bem-vinda, dadas as especificidades culturais, históricas, políticas e sociais de cada país, podemos dizer que, no seu tempo “democrático”, o Brasil está no caminho certo para consolidar a nossa justiça de transição para buscar a verdade e consolidar a memória sobre nosso passado. Para não repeti-lo. As gerações presentes e futuras agradecem.