O legado de Aloysio Biondi

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Via Beth Calò

“Quando o Biondi me convidou pra trabalhar com ele (eu o conhecia da Folha) eu não tive nenhuma dúvida. Deixei meu emprego na Abril, aceitei um salário mais baixo e vivi os melhores anos da minha história profissional. 

Jamais conheci alguém tão talentoso, generoso, paciente, engraçado, exigente, justo e terno. E independente, claro. Ficamos muito amigos. Nossos filhos (meus e dele) eram pequenos. Tocamos muitos projetos, viajamos, passamos noites em claro regadas a vodca, chope e música. E fizemos jornalismo.

Como era bom. Meu Deus, como era bom. Ele me chamava de Beth Scaló (nunca entendi por quê). No seu enterro me surpreendi com homenagens vindas de todos os lados, das mais diversas cores ideológicas. 

E me emocionei com bilhetinhos deixados em seu caixão. Eram de seus alunos da Casper Líbero. Agradeciam pelos ensinamentos do mestre. Comovente. Comovente, mesmo. 

Biondi fez e deixou escola. Tornou-se imortal. Ainda bem.” 

Por Flávio Moura

Acho que o Aloysio Biondi foi o primeiro jornalista que conheci. Bem pequeno ainda, encontrava com ele na casa do Antonio e do Pedro, filhos dele e meus amigos da escola.




Lembro do andar meio gingado, voltando pra casa do trabalho, com o vozeirão grave e a paciência infinita para os moleques – nós – que ficavam andando de skate no quintal ou jogando coisas nos carros que passavam na rua.

A decisão de prestar jornalismo surgiu um pouco a partir do exemplo dele. Não que no colegial eu acompanhasse com rigor o noticiário sobre economia, mas via nele uma integridade, uma disposição para a briga e uma indignação com as injustiças do país que ajudavam a fazer do jornalismo uma profissão que parecia valer a pena.

Poucos anos depois, já na faculdade, passei algumas semanas como estagiário no jornal que ele dirigia na época, o “Diário do Comércio e da Indústria”, que tinha escritório no centro velho de São Paulo. Ele ficava atrás de uma pilha indescritível de livros e jornais e revistas – mal dava pra vê-lo atrás da mesa, digitando com velocidade.

Foi por essa época que saiu “O Brasil Privatizado”, uma coleção de textos seus sobre os vários processos de privatização ocorridos no Brasil durante os anos 1990. O livro saiu pela Fundação Perseu Abramo e estourou de vender – virou um guia importante para os críticos das políticas de redução do Estado implementadas nos anos FHC.

Aloysio era um leitor compulsivo de jornais. Tinha capacidade de pescar nas menores notas de pé de página uma informação decisiva. Conseguia mostrar como a hierarquia das notícias nos grandes jornais e revistas nada tinha de gratuito – e recompunha as narrativas, sempre com detalhe e precisão, em artigos que desmontavam os argumentos de interesse do governo.

“O Brasil Privatizado” agora ganha uma reedição. O lançamento em São Paulo será na segunda que vem, com a presença, entre outros, de Janio de Freitas, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo e seu filho, Antonio Biondi. É uma ocasião importante para relembrar seu legado.

Seu livro é o atestado de um momento crítico da história política brasileira, em que a liberalização assumida pelo governo do PSDB marcava uma guinada na identidade do partido e dava início à cristalização que se vê até hoje entre os polos determinantes da política brasileira.

Aloysio morreu em 2000. Uma geração inteira cresceu sem ler seus textos. É grande a falta que ele faz num momento em que jornalistas antes associados às causas de esquerda foram cooptados pelo governo e produzem blogs chapa-branca e os que se dizem liberais preferem reeditar o que há de mais arcaico no reacionarismo brasileiro.

Como Janio de Freitas, autor do prefácio da nova edição do livro, Aloysio representa uma forma rara de jornalismo, feita de apego à apuração, motivada por indignação com as desigualdades do país e consciente das divergências inconciliáveis entre os empregados e os patrões da profissão.

No enterro dele, lembro que a Luli, mãe do Fabio, também nosso amigo de escola, comentou que o “lado de lá” estava ficando melhor. Ela morreu poucos anos depois e nunca mais esqueci a cena, que volta sempre que se vai alguém importante pra vida da gente ou do país.

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