Por Felipe da Silva Freitas, Justificando –
No último dia 12 de julho, o Brasil perdeu uma das suas mais significativas intelectuais e militantes políticas. Após luta contra o câncer, Luiza Bairros, ativista do movimento de mulheres negras e ex-ministra da SEPPIR, partiu deixando atônitos seus companheiros/as do movimento negro, seus amigos e familiares. A perda de Luiza parece mais um duro golpe num contexto sofrido e desafiador para todas e todos nós; mais uma perda que acomete nosso tempo.
Hoje, passados alguns dias sem a presença física de Luiza, recordo das palavras dela mesma sobre homenagens póstumas e fico pensando sobre o que mais poderia ser dito neste momento tão difícil para a luta negra brasileira.
Com seu estilo marcante e sua palavra firme, Bairros costumava ser enfática ao se pronunciar em cerimônias de homenagem a pessoas que partiram. Por várias vezes pude assisti-la dizer que “a homenagem só é válida se cada uma e se cada um efetivamente incorporar aquilo que é o legado de quem está sendo homenageado”.
Agora, com o coração ainda muito apertado pela saudade, somos desafiadas/os a também nos questionarmos: Qual a melhor forma de homenageá-la? Como honrar o legado de alguém que fez da sua vida um permanente voto de compromisso com a luta contra todas as formas de violência e discriminação? Quais ensinamentos de Luiza com os quais devemos nos comprometer?
Herdeira do melhor da luta negra que se organizava no começo da década de 1980, Luiza Bairros soube aprender com os seus companheiros e companheiras que o rigor militante e organização coletiva eram fundamentais para construir a unidade política necessária para o enfrentamento ao racismo e para a emancipação política de negras e negros. Por várias vezes, ouvimos Luiza falar em seminários, palestras e nas conversas saborosas do cotidiano que “ou a questão racial era tratada como uma questão nacional; ou nada seria efetivo na luta contra o racismo”.
Como destacou em histórica entrevista ao Jornal do Movimento Negro Unificado – MNU (organização que integrou até o ano de 1994), “não se trata mais de ficarmos o tempo todo implorando, digamos assim, para que os setores levem em conta nossas questões, que abram espaços para que o negro possa participar. Essa fase efetivamente acabou. Daqui para a frente, vamos construir nossas próprias alternativas e, a partir dessas alternativas, criar para o povo negro como um todo no Brasil uma referência positiva” [1].
Ao dizer isso, Luiza antevia os próximos capítulos da luta política brasileira numa advertência que segue bastante atual: “não se trata de um projeto político do negro para o negro, ou seja, o negro pensando dentro da sua própria comunidade, mas sim o negro pensando para a sociedade brasileira como um todo e levando em conta todos os povos, todas as raças que a compõe” [2].
Esta consciência balizou toda a sua trajetória de modo que, mais de vinte anos após as referidas declarações ao Jornal do MNU, Luiza disse em Seminário Internacional realizado em São Paulo, em maio de 2015, “engula o choro” [3] – uma frase provocativa, acompanhada de muitos risos, para criticar as posturas que tendiam a repetir uma série de reclamações sobre a conjuntura e a desconsiderar as possibilidades de luta abertas a partir da ação política do movimento negro. E, na mesma linha, afirmou em 2016:“Não cabemos mais no mesmo lugar, aconteça o que acontecer” [4], referindo-se às ações do movimento negro nos últimos quarenta anos e seus resultados positivos em termos de desconstrução do mito da democracia racial.
Luiza sempre soube que a senha para enfrentar a brutal violência racial que funda e organiza este país é a ação política organizada de negras e negros; sempre soube também que, sem eliminar as barreiras que hoje afastam negros e brancos, jamais será possível falar numa sociedade efetivamente livre e democrática.
A ausência física de Luiza nos privará de leituras refinadas e radicais como esta, bem como nos impedirá de acessar diretamente uma interlocutora“generosa com os amigos e rigorosa nos resultados”, como nos lembrou Hélio Santos quando do falecimento de nossa querida companheira. Contudo, será pelo compartilhamento destes “saberes militantes” e pelo compromisso com as causas que ela sempre defendeu que a manteremos viva, como ela sempre quis, na luta por um mundo sem racismo e sem qualquer outra forma de discriminação. Que Luiza esteja em paz, pois, do lado de cá, haveremos de nos esforçar para que todos/as fiquemos a postos para sermos dignos/as de honrar o seu legado.
Felipe da Silva Freitas é doutorando em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e foi assessor da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República durante a gestão da ministra Luiza Bairros (2012 – 2015).