O livreiro de Berlim

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Por Fernando Molica, Projeto Colabora –

Pernambucano cria livraria que se transforma em centro de divulgação da cultura brasileira na Alemanha

Radicada em Berlim, a atriz paulistana Mariana Senne costuma ir até lá adquirir obras de autores como Clarice Lispector e Bernardo Carvalho, mas, desta vez, tratou de aplacar outro tipo de saudade, e saiu da loja com 250 gramas de café embalado no Brasil e massa de pão de queijo.




À frente da livraria está o pernambucano Edney Pereira Melo, de 41 anos. Em 2003, o então estudante de Letras pediu demissão do cargo de gerente de uma loja de pneus no Recife, brigou com a namorada e, só de birra, aceitou a sugestão da moça de enfim embarcar para Berlim – ele vivia dizendo que, um dia, iria para lá.Livros, CDs e artigos como guaraná e cachaça dividem, há dez anos, o espaço d’A Livraria, loja que fica no Mitte, região central de Berlim e que é focada, principalmente, na literatura em língua portuguesa, com destaque para autores brasileiros. Uma livraria que faz muito mais do que vender produtos para saciar estômagos e cérebros – ao longo dos anos, transformou-se num polo de difusão cultural e promove debates, leituras e um festival anual, o Brasilien trifft Berlin, Brasil Encontra Berlim.

– Eu queria mesmo era ir pra Berna, na Suíça, por conta de um amigo meu que morava na cidade. Mas, como o nome era parecido, vim pra Berlim – conta, rindo, Edney.

Para o escritor Rafael Cardoso, que mora em Berlim desde 2012, Edney “é uma espécie de adido cultural informal e bloco-do-eu-sozinho das letras pátrias”. Ainda em 2016, Cardoso lançará na livraria a edição alemã de seu romance ‘O remanescente’ (o lançamento brasileiro será no próximo dia 26 na Livraria Folha Seca, no Centro do Rio).  Entre os autores que já passaram pelo pequeno auditório d’A Livraria estão Ruy Castro, Cristóvão Tezza, Paulo Lins, Heloísa Seixas, Daniel Galera, Edney Silvestre, Silvia Bittencourt, Marcelino Freire, João Paulo Cuenca e Raimundo Carrero.

Em 2003, o pernambucano Edney Pereira Melo, então estudante de Letras, pediu demissão da loja de pneus no Recife e foi para Berlim. Foto de Fernando Molica
Em 2003, o pernambucano Edney Pereira Melo, então estudante de Letras, pediu demissão de uma loja de pneus no Recife e foi para Berlim. Foto de Fernando Molica

Com o dinheiro que recebeu da loja de pneus, Edney Melo ficou três meses na Alemanha, período em que conheceu a italiana Catia Russo. Pouco tempo depois, eles juntaram suas bibliotecas e foram morar juntos. Entre idas e vindas ao Brasil, ele precisou ser submetido a uma cirurgia num dos joelhos – e acabou sendo internado em Berlim. Ao tentar comprar livros para o marido, que ainda não dominava o idioma alemão, Catia descobriu como era difícil encontrar publicações em português na cidade. Da constatação surgiu a ideia de fundar uma livraria que teria também livros em italiano.

Edney, que então ganhava a vida tocando percussão em grupos de música brasileira, e Catia recorreram a bancos para conseguir os 40 mil euros (cerca de R$ 148 mil) necessários à empreitada. Mesmo sem apresentar qualquer garantia, conseguiram o dinheiro e o benefício de, durante três anos, pagar apenas os juros do empréstimo. Ainda receberam um estímulo oficial para empreendedores. Pelos mesmos três anos, o governo alemão pagou o aluguel da loja, bancou o plano de saúde do casal e ainda concedeu uma espécie de bolsa família empresarial de uns 700 euros (uns R$ 2.600) mensais. “Sem essa ajuda, não haveria como bancar o negócio”, admite Edney.

Graças ao entusiasmo do casal, aos juros alemães e à forcinha do governo, no dia 6 de novembro de 2006 – exatos 90 anos depois de Donga registrar o primeiro samba brasileiro, “Pelo Telefone” -, nascia A Livraria. Nos primeiros tempos, nada de autores famosos na lista dos mais vendidos. Os best sellers eram, pela ordem, feijão, guaraná e tapioca. Mas, aos poucos, as vendas se equilibraram – hoje, Edney e Catia despacham livros brasileiros para o mundo inteiro e expõem seus produtos também em gigantes virtuais como a Amazon.

Aos poucos, Edney começou a promover debates e lançamentos na loja – dava um jeito de levar até Berlim autores brasileiros que, por algum motivo, passavam pela Alemanha. De evento em evento, criou o Brasilien trifft Berlin. Em 2013, a pescaria foi generosa: ele conseguiu carregar para sua livraria muitos dos escritores que haviam sido convidados para a Feira do Livro de Frankfurt, naquele ano dedicada ao Brasil.

No ano passado, Rafael Cardoso deu uma ajuda e, com apenas 300 euros, conseguiu organizar uma mostra de artes plásticas com obras de sete brasileiros e um alemão – o título, baseado no número de artistas, foi uma provocação com um drama nacional: “7 x 1 – artistas brasileiros em Berlim”. O evento anual também costuma reunir grupos de música e dança.

Para viabilizar as iniciativas, Edney joga nas 11, bate escanteio e corre para cabecear. Em 2014 e 2015, conseguiu verba de quatro mil euros com os ministérios da Cultura e das Relações Exteriores do Brasil, dinheiro que não entrou em 2016.  Outra fonte de recursos é a Fundação Biblioteca Nacional que tem um programa que banca a viagem de escritores brasileiros ao exterior.

Na falta de grana para hotel, escritores acabam hospedados no apartamento de Edney, no Kreuzberg, bairro que abriga imigrantes turcos e que virou moda na cidade.  Este ano, o casal deu mais um passo e fundou a Edition Tempo, editora que já lançou livros dos brasileiros André Sant’Anna e Marco Coiatelli.

As prateleiras d’A Livraria estão abarrotadas de livros brasileiros, mas Edney lamenta a dificuldade para obtê-los. Este ano ele conseguiu o direito de fazer encomendas diretas ao Grupo Editorial Record, mas, de um modo geral, é obrigado a comprar de distribuidores, o que encarece os livros. Muitas vezes, prefere adquirir edições portuguesas de autores nascidos no Brasil. Um mesmo livro de Jorge Amado pode ser encontrado na loja por 24,50 euros (edição portuguesa) e por 43,80 euros (edição brasileira).

Apesar das dificuldades e do lucro pequeno – só no mês passado ele e Catia conseguiram terminar de pagar o financiamento bancário -, Edney não reclama. Cheio de projetos, ele demonstra ter mais ambições que seus times do coração, o Sport Recife e o Hertha Berliner. Anda de olho em financiamento alemão para os próximos projetos e aposta que, em 2017, seu festival será ainda mais significativo.

Para o amigo Rafael Cardoso, o pernambucano “não toma ares de grande intelectual. Trata com a simplicidade de sua raiz agreste, e vai mantendo viva uma visão de Brasil na qual é gostoso a gente se reconhecer.”

Fernando Molica participou, em novembro, de eventos n’A Livraria, na Universidade Livre de Berlim e na Embaixada Brasileira. A passagem aérea foi bancada pelo Programa de Intercâmbio de Autores Brasileiros no Exterior, da Biblioteca Nacional. 

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