O livro de Elis e o filme de Cássia: autorizada ou não, uma biografia deve ser honesta

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Por Cynara Menezes, blog Socialista Morena – 

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(As capas “não-autorizadas” da Veja com Elis e Cássia Eller em 1982 e em 2002)

 

Quando Elis Regina morreu, aos 36 anos, em janeiro de 1982, eu tinha 14 anos e chorei muito. Adolescente no final da ditadura militar, sabia pouca coisa da vida, mas sentia que uma gigante da música tinha ido embora. Fiquei chocada quando soube que tinha morrido de overdose de cocaína. Simplesmente não “ornava” com Elis –além de, então, não ter a menor ideia do que fosse aquela droga. Naquela semana, a revista Veja fez questão de dar a suposta causa da morte como destaque na capa em vez da grandeza artística da cantora.




Quando Cássia Eller morreu, aos 39 anos, em dezembro de 2001, eu tinha 34 anos e a notícia estragou as festas de final de ano em minha família. Àquela altura, já sabia exatamente o que era a cocaína, droga que vitimou muita gente da minha geração, e imaginei que a razão da morte de Cássia pudesse ter sido uma overdose. Não era. Cássia estava “limpa” havia dois anos. Mas, em vez de esperar o laudo da necropsia, a revista Veja mais uma vez se apressou em destacar a droga em detrimento do talento.

Essas histórias me vieram á cabeça após assistir ao ótimo documentárioCássia, que está em cartaz nos cinemas. O filme dirigido por Paulo Henrique Fontenelle é claramente uma biografia autorizada da cantora. Cuidadoso, delicado, amoroso. Não que a vida louca, vida breve da roqueira tenha ficado de fora. Está tudo ali: as baladas de pó com o tio-empresário, as crises de abstinência, os surtos, o lesbianismo assumido da cantora. Sem caretices. Mas percebe-se que não há, no filme, nenhum interesse em comprar brigas com ninguém, apenas em contar a história de Cássia da maneira mais honesta possível. É um documentário para fãs. E isso não é um defeito, pelo contrário.

Vi este mesmo tom no livro Viva Elis, de Allen Guimarães (editora Master Books), que recebi de presente de Maria Rita, filha da cantora, no ano passado. Fã assumido de Elis e atualmente assessor de Maria Rita, Guimarães conta a história da gaúcha de Porto Alegre desde a infância até a morte por ingestão de cocaína misturada com uísque, como se noticiou à época. O livro tem fotos inéditas, é prazeroso e se deixa ler de uma sentada.

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Em 2013, quando houve o debate sobre a liberação das biografias não-autorizadas, me posicionei a favor, claro. Não faz sentido que o Brasil seja o único país onde se dependa da autorização do personagem para a publicação de uma biografia. Mas quero dizer que não considero que uma biografia seja boa apenas pelo fato de não ter sido autorizada. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Uma biografia autorizada pode ser boa e uma não-autorizada pode ser ruim; e vice-versa. Digo inclusive que as melhores biografias que li na vida eram autorizadas ou mesmo autobiografias. A questão, para mim, não é a biografia ser autorizada ou não-autorizada, mas ser bem escrita. E honesta.

Quando um escritor ou um jornalista se baseia em fofocas para escrever um livro ou uma reportagem, quando as informações não são checadas, quando os principais envolvidos não são ouvidos, não se pode esperar que saia boa coisa dali. Independe de o biografado ser a favor ou não de sua publicação. Biografias, autorizadas ou não, que cometam injúria ou que falseiem a trajetória da figura pública em questão, podem e devem ser alvo de ações judiciais. O que fará delas bons livros, que é o que importa, é a forma como a história é contada e as revelações que contêm –e não que se conte absolutamente tudo sobre a vida da pessoa.

No livro autorizado sobre Elis, por exemplo, aparece um questionamento que eu não conhecia. O autor rejeita a tese de que ela tenha morrido de overdose de cocaína, baseado, em primeiro lugar, no depoimento de seu namorado, o advogado Samuel MacDowell. “Não acredito nas afirmações contidas nesse laudo”, disse MacDowell à época. Harry Shibata, o legista que fizera a necropsia da cantora, tinha sido o mesmo a atestar o “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, em 1975. McDowell fora um dos advogados que acionara a União contra a tese do suicídio e conseguira provar na Justiça que Shibata assinara um laudo falso e que Herzog fora torturado até a morte.

“Suspeitou-se à época que o legista estivesse se vingando do caso Vladimir Herzog, ligando Elis –uma cantora de protestos, militante, filiada ao PT, com discursos contrários ao governo– e seu namorado ao uso de drogas ilícitas”, diz o livro. “Pediu-se contraprova dos testes, mas não foi permitido. Shibata alegou que chamou o médico Álvaro Machado Júnior para acompanhar a autópsia justamente para não haver questionamento. O médico, por sua vez, falou ao Estado de S.Paulo que não tinha nada a questionar sobre a autópsia, porque foi absolutamente normal, mas não podia dizer nada sobre os resultados por não ter acompanhado os exames toxicológicos”. O mais grave: “nos laudos, Shibata diz não ter encontrado cocaína nas vísceras de Elis”. Bizarro, para dizer o mínimo.

Faltou jornalismo à Veja ao cravar na capa que Elis morreu de overdose, sem apontar nem uma sombra de dúvida, ao contrário do que fizeram familiares e amigos? Não seria surpresa. Afinal, a revista apoiava a ditadura, que interesse teria em brigar com ela? Exatos 30 anos depois de Elis, Veja faria o mesmo com Cássia Eller –e era mentira. A rigor, ambas as reportagens eram não-autorizadas. Eram honestas?

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