O Machado de Assis negro

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Por Urariano Mota, publicado em Jornal GGN – 

Antes mesmo que se veja o movimento Machado de Assis Real como uma criação esquerdista, de autêntico mimimi, é bom saber que a discussão do embranquecimento de personalidades vai além de Machado de Assis.

A Faculdade Zumbi dos Palmares começou nestes dias o movimento Machado de Assis Real, que procura repor a cor natural do maior escritor brasileiro. No site http://machadodeassisreal.com.br/ está publicado:

“O racismo no Brasil escondeu por séculos quem ele era. Sua foto oficial, reproduzida até hoje, muda a cor da sua pele, distorce seus traços e rejeita sua verdadeira origem. Machado de Assis foi embranquecido para ser reconhecido. Infelizmente, um absurdo que mancha a história do país. Uma injustiça que fere a comunidade negra”.




Isso merece duas ou três considerações. Antes mesmo que se veja o movimento Machado de Assis Real como uma criação esquerdista, de autêntico mimimi, é bom saber que a discussão do embranquecimento de personalidades vai além de Machado de Assis. Até onde a memória sem auxílio do google alcança, lembro que poucos pessoas  sabem que o maior nome da literatura russa, o poeta Puschkin, era descendente de negros. O seu bisavô, o africano Abram Petrovic Gannibal, chegou à Rússia como escravo e ascendeu à nobreza sob o czar Pedro, o Grande. Excepcionais méritos deveria ter esse bisavô, sem dúvida.

Em literatura mais clássica, perto da nossa formação, o que dizer do imenso Padre Antônio Vieira, a quem Fernando Pessoa respeitava como o Imperador da Língua Portuguesa? Pelas imagens, de escuro Vieira só possuía as vestes de religioso.  Era um gênio branco, do nariz afilado à cor de todos os traços até os lábios finos. Pois sim. O Padre Vieira descendia de africanos, que em algumas fontes se dá como descendente de bisavó negra ou mulata. O que quer dizer, de certa forma o mundo da sua criação começou pela mulata. Sentido total, pois Lamartine Babo bem cantou  no século XX que a mulata era a tal.

Mais perto de nós, temos o mulato Castro Alves, que em todas imagens de livros didáticos aparece como um galã de larga cabeleira, de traços claros de quem veio de países de neve. A lista seria extensa. Mas a pergunta que sobra é: Machado de Assis, quando nas fotos sai de branco para quase branco, daí para mulato, e finalmente para negro, negro, negro na cor, nas linhas do rosto nada caucasianas, será um exagero? Pior, acusar as fotos tradicionais do seu rosto como uma falsificação seria um absurdo?

Não, quando lembramos que os fotógrafos, desde o Império, branqueavam as pessoas no estúdio conforme a posição social do freguês. Não, quando sabemos que a mudança de tonalidade de mestiços, ou até mesmo a mágica de os tornar brancos, é uma força da formação nacional. A maioria, se não todas crianças brasileiras ouvem dos pais, dos vizinhos e das ruas, que negros devem se casar com brancas para “clarear a raça”. Na própria história de Machado de Assis, ele já consagrado na literatura, já presidente da Academia Brasileira de Letras, quando falece vem o reparo indignado de Joaquim Nabuco. Então embaixador nos Estados Unidos, Nabuco se revoltou ao saber que os jornais noticiaram o falecimento do mulato Machado de Assis:

O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego” .

Ao que poderia responder hoje a Faculdade Zumbi: “Sim, Machado de Assis era um grego, mas um tanto queimadinho de sol, pois não?”. Pois sim. Creio que em boa hora começou a discussão. Ela é mais que uma mudança de tom.

Urariano Mota – Escritor e jornalista. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude” 

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