Na melhor fase da história, enredos das escolas de samba conectam-se aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, formando menu de assuntos relevante e crítico
Por Marcelo David Macedo, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: A abertura do desfile “Guajupiá, terra sem males”, da Portela em 2020: mensagem poderosa pelo planeta criada pelo casal Márcia e Renato Lage. Foto Fernando Grilli/Riotur
No próximo domingo (19), quando Ito Melodia anunciar o retorno do glorioso Império Serrano ao Grupo Especial do Carnaval carioca, terá início a festa quase centenária que movimenta aldeias, corações e mentes em torno de histórias mais ou menos desconhecidas, mas que quase sempre têm a capacidade de nos tornar maiores e melhores. A partir dali, a rua Marquês de Sapucaí terá sobre si os olhos de todo um planeta afundado em urgências.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU pregam a erradicação da fome e da pobreza, melhoria do meio ambiente, igualdade de gênero, entre outros temas absolutamente relevantes. Todos foram cantados pelas escolas de samba do Rio em diversos momentos dos desfiles desde que Zé Espinguela os idealizou, em 1929. Porém, nos últimos anos, uma série de fatores conduziu as agremiações para a linha de frente do progressismo brasileiro; em 2023, todos os 12 enredos do Grupo Especial do carnaval carioca têm alguma ligação, direta ou indireta, com os ODS.
O recém-promovido Império Serrano e atual campeã Grande Rio abrirão o primeiro dia de desfiles com homenagens a dois dos maiores fenômenos populares do país: a brava Serrinha falará de Arlindo Cruz a partir de sua obra e o terreiro caxiense promoverá divertida busca por Zeca Pagodinho por bairros do Rio e de Duque de Caxias, incluindo a mítica Xerém. O ODS 4, “Educação de qualidade”, sustenta a importância da “valorização da diversidade cultural”, e as obras de Arlindo e Zeca (e, claro, de Império e Grande Rio) estão entre as mais valiosas contribuições para a cultura brasileira. Os dois desfiles buscarão reforçar esse entendimento para além do clube quase fechado dos que acompanham escolas de samba o ano inteiro, a chamada “bolha carnavalesca”.
O ponto acima também abraça a Mocidade Independente de Padre Miguel, que trará para o Rio os artistas de Alto do Moura, bairro de Caruaru, em Pernambuco, todos discípulos de Mestre Vitalino, que ergueu sua obra do barro até se tornar um dos maiores artistas plásticos do Brasil. O ODS 4 também liga a Paraíso do Tuiuti, que conta a história da chegada de búfalos à Ilha de Marajó, no Pará, e a Imperatriz Leopoldinense, que narra, através da literatura de cordel, a delirante chegada do mitológico cangaceiro Lampião ao céu e ao inferno (e o impedimento de sua entrada em ambos). São escolas que, com dois ótimos sambas, também valorizam a diversidade cultural e promovem a “contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”, como está no documento das Nações Unidas.
Tem mais. A centenária Portela, ao contar sua secular odisseia a partir da narrativa hipotética de cinco grandes portelenses como Paulo Benjamin de Oliveira, o professor Paulo da Portela, também se insere nessa turma que propõe “educação de qualidade” como objetivo de desenvolvimento sustentável. A Unidos de Vila Isabel promete levar à Sapucaí as festas de um Brasil inteiro, contando como cada regionalidade contribui para o enriquecimento cultural do brasileiro enquanto povo – e, como vimos, a valorização desta diversidade consta no sétimo ponto do ODS 4.
É também inspiração do Salgueiro, que promete mergulhar na obra do grande Joãosinho Trinta para revelar as delícias possíveis de um hipotético paraíso vermelho, onde tudo é permitido e nada é obrigatório. Aqui, a Academia do Samba pode trazer o que se entende como “estilo de vida sustentável”, com a “promoção de uma cultura de paz e não violência, num exercício de cidadania global”, atingindo também o ODS 10, “Redução das desigualdades”, através da garantia de eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito”: “Basta!, de violência e opressão/Chega!, de intolerância”, canta o contestado, mas valente, samba da escola.
O contexto é importante. Se há alguns anos, a tônica para os enredos das grandes escolas era o tema patrocinado, seja na abordagem da matéria-prima de um produto específico (oi, iogurte!), seja na “homenagem” a cidades, estados ou países que investem em determinada agremiação – os tais “enredos CEP” -, hoje predominam os temas autorais. O país mudou, e ainda bem, através da construção de políticas públicas que facilitaram o acesso e a permanência de pessoas de baixa renda em estruturas educacionais de qualidade, ou da promoção de debates historicamente negligenciados que, hoje, nos permitem dizer que estamos melhores (enquanto os que fazem parte do problema teimam que “o mundo está chato”. Paciência).
Essa geração com mais acessos tem ferramentas mais eficazes de contestação. E agora, após muitos anos de peleja em espaços de menor visibilidade na bruma dos barracões, as pessoas que ascenderam no boom político, social e econômico dos anos 2000/2010 passaram a ocupar espaços de criatividade e de decisão historicamente negados a quem não tem sobrenome. Agora, a festa mudou de mãos: felizmente, a lista de presidentes, diretores/as, carnavalescos/as, enredistas e historiadores/as pretos/as, pertencentes à população LGBTQIAP+ e oriundos/as das camadas populares é incontável, só aumenta, num caminho sem volta.
Em 2023, as regiões Norte e Nordeste do país predominam no Grupo Especial do Rio: sete dos 12 enredos desenvolvidos têm estes territórios como inspiração direta ou indireta. Como a Unidos da Tijuca, que falará da Baía de Todos os Santos, a reentrância da costa litorânea que se localiza no estado da Bahia e, no mundo, só perde em tamanho para o Golfo de Bengala, na Índia. Outra que se veste de Bahia para 2023 é a Mangueira, fundada no terreiro de Tia Fé, mãe-de-santo, jongueira e líder comunitária no recém-ocupado morro de Mangueira que tinha ligações importantes com Salvador: uma das versões existentes é a de que Tia Fé fora trazida da capital baiana até o Rio de Janeiro no período pós-abolição.
Nos exemplos tijucano e mangueirense, além da diversidade cultural idealizada no ODS 4, também chama a atenção a aproximação dos dois enredos com ODS 11, “Cidades e comunidades sustentáveis”, a fim de “fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural do mundo”. Na Mangueira, escola que tem uma mulher, Guanayra Firmino, como presidente (e a rainha de bateria da escola-mãe, Evelyn Bastos, como a presidente da Mangueira do Amanhã), o ODS 5, “Igualdade de gênero”, é atingido em cheio. O excelente samba mangueirense é uma ode ao poder matriarcal que a ancestralidade ensina.
Os ODS 4 (“Educação de qualidade”), 5 (“Igualdade de gênero”) e 10 (“Redução das desigualdades”) também estão presentes na proposta da Viradouro, que contará a história de Rosa Maria Egipcíaca, mulher negra do século 18 nascida no Benin, escravizada e trazida para o Rio, considerada santa, prostituta, bruxa, profetisa e reconhecida, enfim, como a primeira mulher negra a escrever um livro na história do Brasil. Sua fascinante história é contada através de um ótimo samba, bastante emocionante, que conversa com o segundo ponto do ODS 5, que visa a “eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos”.
Por fim, a Beija-Flor de Nilópolis contará a história da revolução de 1823 na Bahia, o Dois de Julho da independência baiana, comemorado até hoje como um levante popular que expulsou os portugueses e foi apagado da história “oficial” brasileira justamente por ter o povo e três mulheres, Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Filipa, como protagonistas. Aqui, a Soberana reforça seu lugar historicamente contestador com samba explosivo que remete aos ODS 1 (“Erradicação da fome”), 2 (“Fome zero e agricultura sustentável”), 5 (que promove a igualdade de gênero), 10 (redução das desigualdades) e 16. “Paz, justiça e instituições eficazes” que exige transparência, eficácia e responsabilidade a todas as instituições, e também a garantia de “tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”.
Como se vê, é a época de ouro do carnaval carioca em relação ao equilíbrio e ao nível de apresentação das escolas de samba e de diversos segmentos, como bateria e mestre-sala e porta-bandeira. Também nunca estivemos tão perto da função principal de uma escola de samba, que é ser a guardiã de toda uma aldeia quase sempre machucada pelo Estado e pelo mercado, a reserva cultural de um povo e o caminho que aponta o que precisa ser diferente.
O Brasil só se tornará possível quando se der conta que não há solução que passe por fora de uma escola de samba; e sim, o caminho é longo. Mas que seja o início.