O mal-estar com o Brasil

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Por Saul Leblon, para Carta Maior

 

O mal estar progressista acumula as dores do parto de uma nação várias vezes abortada na história. E mais uma vez agora na UTI, esmagada pelo cerco conservador

 

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Não se confunda esse sentimento com a histeria de uma elite incomodada com a ascensão dos pobres no mercado e na cidadania. Esta se resolve  em um resort em Miami.

O mal estar progressista acumula as dores do parto de uma nação inúmeras vezes abortada na história. E mais uma vez agora na UTI, esmagada pelo cerco conservador, respirando por aparelhos.

A construção  inconclusa de que falava Celso Furtado  enfrenta um de seus  capítulos mais angustiante nas horas que correm.

A prostração é a pior sequela.

Mãos que deveriam se unir em caminhada resoluta ruminam a solidão da espera e da dúvida, apartadas entre si e da esperança.

O conservadorismo atordoa o discernimento da sociedade com uma articulação vertiginosa de iniciativas.

Habilidosamente elas misturam o bem-vindo combate à ingerência do dinheiro organizado na vida democrática, ao lado da explícita  tentativa de se demonizar o polo progressista com o selo da política corrompida.

O desfecho cobiçado é impeachment de Dilma ou o sangramento irreversível de seu governo, e das forças que o apoiam, até o sepultamento histórico em 2018.

O que se pergunta ansiosamente é se  Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT ; se a CUT já conversou com Stédile; se todos  já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das providencias que a urgência revela quando se pensa grande.

Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o tique taque se esgotar.

O mal estar progressista reflete outras perguntas que parecem desconectadas desta maior, mas que estão umbilicalmente associadas à falha na construção de uma hegemonia de esquerda que catalisasse as energias e as esperanças da sociedade em direção a um futuro compartilhado.

‘Quero saber quais as matérias de humanísticas existem no curso de medicina’, argui, por exemplo,  a promotora de Direitos Humanos e Inclusão Social do Ministério Público de SP,  Paula de Figueiredo Silva.

A promotora está estarrecida com relatos feitos por alunas da USP, vítimas de abusos sexuais.

Ela conduz um inquérito civil para   apurar denúncias de três  estupros em festas dentro de uma das  escolas  de medicina mais conceituadas do  país,  ademais de registro de preconceito racial e agressão a um casal homoafetivo que tentou participar de um dos eventos promovidos pelos estudantes nos últimos anos.

O que parece um mal-estar específico da promotora Paula de Figueiredo remete a um sentimento mais amplo quando emoldurado por episódios recentes envolvendo médicos, estudantes de medicina e entidades representativas do setor.

A 10 dias do segundo turno das eleições deste ano, e após um debate no SBT, a presidenta  Dilma teve uma queda de pressão e  interrompeu uma entrevista ao vivo.

O gaúcho Milton Pires disparou em sua página no Facebook o seguinte comentário:
“Tá se sentindo mal? A pressão baixou? Chama um médico cubano, sua grande filha da puta!”.

Pires é médico. Especialista em terapia intensiva.

No dia seguinte, a Associação Médica Brasileira (AMB) manifestou-se; não para se solidarizar com  Dilma, e sim para conclamar a classe médica a eleger Aécio Neves.

Dez dias antes, após a vitória petista no primeiro turno (5/10), o site ‘Dignidade Médica ‘, frequentado por um grupo de quase 100 mil  internautas que se identificam como médicos ou estudantes de medicina, postou dezenas de críticas à escolha das urnas.

Em uma dela, uma médica defendia ‘castrações químicas’.

Outra, um ‘holocausto’.

Contra nordestinos que votaram em Dilma.

Pouco mais de um ano antes, em agosto de 2013, o médico cubano Juan Delgado, um negro a de 40 anos, foi submetido a  um coral de natureza ética equivalente  ao desembarcar  no Brasil.

Ao lado de outros profissionais de Cuba, Delgado   chegara para trabalhar no programa Mais Médicos.

Um corredor polonês   formado  por médicos e estudantes brasileiros de medicina, assediou o recém-chegado de forma agressiva no saguão do aeroporto de Fortaleza.

‘Escravo, escravo, escravo!’, reverberava em uníssono o funil de peles alvas e jalecos brancos.

A hospitalidade correu o mundo.

O mal-estar progressista pressentiu algo letal nas vísceras da nação, mas talvez tenha subestimado a extensão da ameaça ao nascimento de um Brasil mais próspero e justo.

Era mais que isso, mas o episódio foi interpretado como a rejeição corporativa  a um programa emergencial criado para mitigar a carência de atendimento em  municípios e periferias, onde profissionais brasileiros não querem trabalhar.

Por exemplo, nas aldeias indígenas das etnias Ka’apoo e Awá, no Maranhão.
Endereço: município de Zé Doca,  300 quilômetros de São Luís,  acessível por estrada de terra.

É lá que o doutor Juan Delgado vive e atende hoje.

Outros 14. 400 profissionais do programa fazem o mesmo  em 3.785 municípios, adicionando mais 50 milhões de brasileiros pobres à cobertura do SUS.

A receptividade a esse mutirão foi  avaliada recentemente.

Pesquisa divulgada no final de outubro, realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais   ouviu 4 mil usuários do  Mais Médicos em 200 cidades do país.

Cerca de 95% dos entrevistados declararam-se muito satisfeitos ou satisfeitos com uma iniciativa condenada por amplos segmentos da classe médica brasileira.

Notas  de 8 a 10 foram dadas ao programa por 87% dos entrevistados.

Mas, sobretudo, os usuários elogiaram o comportamento mais atencioso dos médicos.

Mais interessados em ouvir e habituados a dialogar revelaram-se mais competentes em diagnosticar e tratar.

Médicos cubanos representam 80% do alvo desse elogio.

Por quê?  Porque apenas 1.846 brasileiros se inscreveram no programa.

Se dependesse da adesão local, 45 milhões de cidadãos continuariam apartados da assistência no país.

O mal estar progressista subestimou a clivagem embutida nessa matemática.

Não se trata de demonizar a classe médica brasileira.

Uma sociedade não é feita de anjos e demônios, mas de seres de carne, osso e circunstâncias.

São as circunstâncias que levam a estabelecer conexões entre a subestimação progressista com o que se passa na sociedade e as frequentes demonstrações de que algo dissociado da sorte do país e do destino de sua gente predomina em segmentos referenciais.

O médico e os estudantes de medicina são apenas a ilustração desse fenômeno.

O exemplo do cardiologista Adib Jatene, falecido na semana passada, é a resposta para quem enxerga nesse sentimento a expressão de um ponto de vista marcado pelo reducionismo partidário.

Jatene era um conservador.

Serviu aos governos Maluf, Collor e Fernando Henrique Cardoso.

Mas tinha um compromisso tão elevado com a medicina  que se tornou referência suprapartidária no debate das políticas públicas na área.

Ele foi o responsável pela criação da CPMF  durante o governo do PSDB.

Tornou-se um dos mais ardorosos defensores da sua   recriação quando o ‘imposto do cheque’ foi extinto pela coalizão demotucana, em dezembro de 2006.

Cerca de R$ 40 bilhões por ano foram subtraídos assim do atendimento à fila do SUS.

Um ano depois, de dedo em riste, a voz alterada, ele ainda  interpelava  Paulo Skaf, então presidente da Fiesp,  um dos animadores da campanha que uniu PSDB, Demos e outros contra a CPMF:

‘No dia em que a riqueza e a herança forem taxadas, nós concordamos com o fim da CPMF. Enquanto vocês não toparem, não concordamos. Os ricos não pagam imposto e por isso o Brasil é tão desigual. Têm que pagar! Os ricos têm que pagar para distribuir renda. A CPMF não dá para sonegar! (por isso vocês são contra)”. (Folha; Monica Bergamo; 13/11/2007).

A ira santa de Jatene em defesa da saúde pública contrasta com a rigidez  dos que combateram e combatem arduamente políticas como o Mais Médicos, o Bolsa Família, o ganho no poder de compra do salário mínimo, entre outras.

As diferenças não são técnicas, mas tampouco apenas partidárias, como fica claro.

São mais profundas e espraiadas.

A menos de um mês de uma vitória histórica nas urnas, tudo se passa como se o 26 de outubro fosse um ponto de referência longínquo em um calendário desbotado .

O mal estar progressista, distinto daquele que espairece no portão de embarque para Miami,   só tem cura se associado a uma mudança profunda nas instituições que esclerosaram enquanto se avançava em conquistas sociais e econômicas. E agora ameaçam reverte-las ferozmente.

Para colher frutos duradouros da faxina na corrupção, o passo seguinte não poderá se restringir a mudanças   nas regras de financiamento de campanha.

Elas são necessárias, mas insuficientes para combater o mal-estar que aqui se discute.

Dilma poderá colocar quem ela quiser na Fazenda e no Banco Central.

Mas se não cuidar de certas tarefas santas, dificilmente reverterá um estado de espírito que ameaça reduzir o seu segundo governo a um melancólico intermezzo da restauração neoliberal, com requintes de regressão política e social intuídos nos dias que correm.

O que se passou na Itália após o ‘Mãos Limpas’, nos anos 90, não é uma miragem; é uma possibilidade real em uma sociedade desprovida de representação política forte e organização social mobilzada (leia ‘Mãos Limpas; e depois, Berlusconi?’; nesta pág).

Lá como aqui o lubrificante do retrocesso histórico foi a prostração progressista;  a incapacidade de se reaglutinar a esquerda e os democratas em torno de um repto histórico de esperança para a sociedade.

Regular a mídia; eliminar a hegemonia do dinheiro organizado na política; abrir canais de diálogo consequentes e permanentes com os movimentos sociais; salvar o pré- sal e a Petrobras; atrair a juventude pobre e a da classe média para a tarefa de reformar a escola e a universidade, com o olho na formação do discernimento crítico do país e não apenas no mercado.

Se fizer isso, Dilma não levará a sociedade brasileira ao paraíso.

Mas terá dado os passos necessárias para afastar a película de mal-estar e rendição que hoje ameaça matar de inanição a esperança em um Brasil melhor.

Por onde começar?

Respondendo à pergunta ansiosamente repetida no ambiente progressista.

O que se quer saber é se Lula já conversou com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT ; se a CUT já conversou com Stédile; se todos  já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das providencias que a urgência revela quando se pensa grande.

Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que , mais uma vez, ameaça abortar o nascimento de um Brasil emancipado e progressista, bem…
Serão avisados de forma desastrosa quando o alarme soar.

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