‘O mar é minha vida, não posso ver esse horror e fazer nada’: os voluntários na luta contra o óleo no Nordeste

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Por , publicado em BBC Brasil

Desde às 6h, as mensagens não param de apitar no celular do salva-vidas Lucas Nelli. Mas essas que acabam de chegar, às 8h56 da sexta-feira, são aquelas que ele não gostaria de ver — o que é inevitável.

Com máscara e roupa com proteção UV, o voluntário Lucas Nelli agachado sobre pedras observando objeto com óleo; no plano de fundo, outros voluntários trabalham na praia
‘Eu tô há dias sem dormir direito, estressado, acordo já com 500 mensagens no celular, mas é isso mesmo’, diz Lucas Nelli

Direto da praia da Pedra do Sal, a 800 metros do Farol de Itapuã, em Salvador, uma amiga manda fotos com a situação de momento.

A maré alta da madrugada carregou pra cima das pedras o óleo cru que invade o litoral do Nordeste desde 30 de agosto. As algas estão cobertas pela lama negra e as pelotas sólidas de óleo boiam nas piscinas naturais, que começam a secar com a descida da maré.

Previamente preparado, Lucas ruma direto à praia. Ali, serão horas sob o sol forte e a uma temperatura de 30º C — com sensação mais elevada —, envolto numa atmosfera carregada de toxinas e odor de betume. E ele faz isso voluntariamente.




“O mar é minha vida. Eu sou salva-vidas, surfista e desenvolvo uma terapia pessoal no mar. Não posso ficar vendo esse cenário de horror e não fazer nada. Eu tô há dias sem dormir direito, estressado, acordo já com 500 mensagens no celular, mas é isso mesmo. Fazer o quê?”, resigna-se Lucas.

Como salva-vidas, sua escala prevê que ele trabalhe quatro dias e folgue quatro. Esta semana, a folga foi ocupada integralmente pela limpeza de praias.

“Eu pedi pra meu irmão pegar minha filha na escola hoje. A gente vai se organizando, contando com ajuda de amigos e familiares, pra conseguir colar aqui.”

Com Farol de Itapuã ao fundo, voluntários trabalham na limpeza do óleo em Salvador
Com Farol de Itapuã ao fundo, voluntários trabalham na limpeza do óleo em Salvador

Neste sábado (19), Lucas volta à escala do serviço, na praia de Ipitanga, em Lauro de Freitas — cidade vizinha a Salvador, onde o óleo também chegou, mas em menor intensidade.

“Eu vou ficar de olho no mar, mas limpando. E peço ajuda a todo mundo que passa. Tem que ser assim. Se a gente for esperar o poder público, já era”.

Amigos e voluntários formam o grupo ‘Guardiões do Litoral’

Lucas faz parte de um grupo que surgiu na capital baiana há oito dias, com o objetivo de limpar as praias, mangues e estuários tocados pelo óleo em Salvador e cidades próximas.

Batizado de Guardiões do Litoral, o grupo começou com apenas cinco amigos e amigas praticantes de surfe. Em seguida, todos buscaram conhecidos que morassem em diferentes praias, ampliando o raio do monitoramento.

No dia 12, fizeram o primeiro mutirão de limpeza. Depois disso, com a chegada de cada vez mais óleo nas praias de Salvador, não foi mais possível parar.

“Já tiramos baldes e baldes dessa lama daqui. Mas a maré jogou o óleo pra cima da pedra, o sol esquentou, isso gruda. Como é que limpa?”, lamenta Juvenal Gordilho, que tem dado plantão na Pedra do Sal.

Ele é professor de jiu-jitsu e atua na reciclagem de óleo de cozinha para produção de sabonetes. Mas, nos últimos dias, interrompeu todas as atividades para priorizar o trabalho nas praias.

“Além de todo o esforço, temos uma corrida contra o tempo, porque quando a maré sobe, já foi, só no outro dia. Às vezes, dá a sensação de que estamos enxugando gelo, mas não vamos parar.”

Para otimizar a corrida contra o tempo, os Guardiões criaram alguns métodos.

Esta semana, definiram monitores para cada região do litoral. Quando a maré começa a baixar, eles vão às praias de sua responsabilidade e compartilham nos grupos de voluntários fotos e vídeos feitos com o aplicativo Timestamp, que mostra o local exato e a hora em que aquele registro foi feito, evitando alarmes falsos e facilitando a vida de quem vai chegar para ajudar.

A partir das imagens, define-se a área mais contaminada do dia e as mensagens começam a se espalhar, instigando tantas pessoas quanto for possível para aproveitar a baixa da maré e colocar, literalmente, a mão no óleo.

Criado na terça-feira (15), o perfil dos Guardiões do Litoral no Instagram reuniu mais de 5 mil seguidores em 72 horas.

Nesta sexta (18), 25 voluntários participaram do mutirão na Pedra do Sal, que contou ainda com homens da Marinha e da Empresa de Limpeza Urbana de Salvador (Limpurb).

Pâmela Secoon, agachada e com máscara, trabalha sobre pedras
‘É importante mobilizar as pessoas porque quanto mais gente, mais rápido tira o óleo’, diz Pâmela Seccon

Entres os voluntários, estava o casal Pâmela Seccon e Flávio Bustani. Foi o segundo dia de atuação deles. Na quinta-feira, participaram da retirada de óleo na praia do Rio Vermelho, a poucos metros da faixa de areia que, todo dia 2 de fevereiro, é tomada por pessoas na Festa de Iemanjá – e de onde saem os presentes enviados para a Rainha do Mar das religiões de matriz africana.

“Aqui tem bastante gente. No Rio Vermelho, só tinha eu, Flávio e o pessoal da Limpurb. É importante mobilizar as pessoas porque quanto mais gente, mais rápido tira o óleo”, diz Pâmela.

Ela descreve a limpeza como um trabalho de luta contra a substância.

“É uma trabalheira, porque a gente tira o óleo, mas ele esquenta com o sol, vai derretendo, rasga o saco, fura o balde. Tem que ter paciência”.

Ela é pesquisadora e Flávio, produtor cultural. Ambos deixaram os compromissos de lado para colaborar com a limpeza.

“Só quero ver se não vai aparecer o culpado por isso. Olhe o estado das nossas praias, o cheiro que tá aqui”, diz Flávio, de frente para a bancada de pedra coberta de óleo.

‘O jeito é nos juntarmos para limpar’

Voluntário com luva e máscara trabalha sobre manchas de óleo em pedras
Grupos de voluntários usam aplicativos para se comunicar sobre locais danificados e com equipes atuando

“Muita gente está espalhando nossas informações e dicas, o que tem atraído mais voluntários. Isso nos dá força, traz energia no meio da situação crítica. Enquanto cidadãos, aumenta a sensação de pertencimento, de união, mesmo que seja num momento tão triste”, diz Mariana Thevenin, uma das articuladoras do movimento.

Mariana, que é oceanógrafa física, explica que é de domínio público o mapeamento detalhado do litoral brasileiro, feito pelo Ministério do Meio Ambiente, com indicação dos pontos sensíveis da costa em diferentes níveis.

Essas informações, afirma ela, deveriam ser usadas numa crise como a de agora, o que não vem sendo feito.

“Estamos no meio de uma catástrofe e não vemos ações robustas do governo federal, que, através da Petrobras, é quem dispõe da estrutura para fazer a contenção do óleo antes de chegar na praia e, depois que já chegou, deveria acionar empresas especializadas neste tipo de limpeza. Não era nem pra Limpurb estar fazendo isso. Mas, cadê? Alguém já viu algum barco com as bóias de contenção aqui? O óleo já entrou na Baía de Todos os Santos e fica por isso mesmo. O jeito é nos juntarmos pra ir limpar”, diz.

Nesta sexta, o Ministério Público Federal (MPF), com aval dos procuradores dos noves estados nordestinos, entrou com uma ação contra a União alegando omissão no caso da manchas de óleo. O pedido é que, em 24 horas, seja colocado em prática o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água. A multa diária prevista é de R$ 1 milhão em caso de descumprimento.

Classificando o episódio como o maior desastre ambiental da história no litoral brasileiro, o MPF afirma que a União tem protelado medidas protetivas, sem atuar de forma articulada.

“Afinal, tudo que se apurou é que a União não está adotando as medidas adequadas em relação a esse desastre ambiental que já chegou a 2.100 quilômetros dos nove estados da região”, diz a ação.

O superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) na Bahia, Rodrigo Alves, afirmou à BBC News Brasil que “neste momento, a limpeza das praias é o que tem se mostrado mais eficaz”. O Ibama é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente.

Segundo Alves, como o óleo se move sob a superfície do mar, o que dificulta a sua visualização em sobrevoos e por satélite, “é difícil prever onde montar as bóias de contenção”.

“Além disso, nem todo local é apropriado para colocar as boias”, completa.

Questionado se, mesmo sem a previsão exata, não seria o caso de garantir a proteção em zonas sensíveis onde fosse possível instalar a contenção, como estuários e entradas de manguezais, Alves voltou a dizer que o mais eficiente tem sido as limpezas depois que o óleo toca a costa.

Em visita ao trabalho de limpeza na Pedra do Sal, o prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, afirmou que vai manter a mobilização da Limpurb pelo tempo que for necessário, “sem fazer contas”.

“Nossos homens só saem das praias quando estiver tudo 100% limpo. É claro que isso tem um ônus, causa um prejuízo ao erário, que deve ser cobrado do responsável pela causa primária desse vazamento, que ainda não foi descoberto”, afirmou Neto.

“Não vou polemizar sobre responsabilidades de governos, seja estadual ou federal. A nossa preocupação, nesse momento, é com a retirada desse óleo cru das praias e sua devida destinação”, completou.

Somente nesta sexta, quase 11 toneladas de óleo foram retiradas de seis praias de Salvador. Desde o início da aparição das manchas na capital baiana, já foram aproximadamente 91 toneladas.

Voluntária pede licença do trabalho para participar de limpeza

Isabel Sant'Ana trabalha agachada em mangue
A fotógrafa Isabel Sant’Ana descreve cenário ‘assustador’ em manguezal

A fotógrafa Isabel Sant’Ana juntou-se aos Guardiões do Litoral logo no primeiro momento, após ver uma postagem do engenheiro Arthur Sehbe.

No sábado, dia 12, ela partiu para uma ação de limpeza na praia de Itacimirim, Litoral Norte da Bahia, a 75 quilômetros de Salvador. Lá, encontrou algumas pelotas na areia, mas ficou chocada mesmo ao chegar na barra do Rio Pojuca, onde há um extenso manguezal.

“Era assustador, eu comecei a chorar. Tinham manchas de óleo maiores que uma pessoa. A gente tirava os bolos de óleo dos buracos e quando metia a mão de novo, estavam lá os caranguejos mortos”, conta ela, que durante esta semana chegou a pedir licença do trabalho para participar de uma nova ação.

Na terça, entretanto, Isabel começou a sentir dores de cabeça, ficou com as vias aéreas sensíveis e sem apetite. Ela não tem dúvida: o mal estar foi motivado pelo óleo.

A médica clínica geral e homeopata Mônica Oliveira confirma que esses sintomas são comuns a quem fica muito tempo exposto ao derivado de petróleo, pois ali estão contidos altos níveis de substâncias neurotóxicas.

“É com isso que se produzem colas, removedores, resinas, só que em quantidades bem menores. Aquilo é óleo cru, é muito tóxico.”

A médica sugere que, dentro do que for possível, os voluntários criem uma escala de revezamento nas praias, evitando atuar em dias seguidos. Isto para dar tempo de o corpo liberar a toxicidade antes de receber uma nova carga.

Outra dica é evitar o uso de bebidas alcoólicas e cigarro.

“As drogas, mesmo as lícitas, sobrecarregam o corpo que, neste caso, já está intoxicado pelo óleo. Por isso é bom evitar beber ou fumar neste período, até para conseguir realizar este trabalho por mais tempo”, observa.

No perfil do Instagram, os Guardiões alertam sobre a importância de que os voluntários se protejam para participar da limpeza. É preciso usar luvas, botas de PVC, calças, camisas de manga comprida, pás, peneiras e máscara. Com um detalhe: como o contaminante libera vapores ao ser aquecido pelo sol, o ideal é uso de máscara para gás, ainda que a máscara para poeira já ajude.

Somente a máscara para gás custa, em média, R$ 260. Por isso, os voluntários pedem que empresas que tenham esses itens ou pessoas que possam comprá-los façam doações de equipamentos. Não são aceitas doações em dinheiro.

Em Salvador, os Guardiões garantem o plano de manter a mobilização até que as manchas de óleo parem de aparecer, ainda que este seja um horizonte incerto – já que ainda não se sabe a quantidade de óleo derramado no oceano, assim como a localização exata e a data do derramamento.

Mesmo diante do desastroso quadro, Mariana Thevenin tenta manter o otimismo: “Enquanto for preciso e possível, vamos seguir. Os oceanos e as praias são fundamentais pra gente, seja pela regulação térmica, seja pelo lazer ou pelos alimentos. Vamos continuar cobrando respostas dos governos, mas, enquanto isso, metemos mão. É nossa responsabilidade meter mão”.

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