O Marcius Melhem que vive em cada brasileiro

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Relatos da atuação do chefão assediador de mulheres do humor da Globo provam que o machismo e sua prima mais descarada, a misoginia, moram na alma e no caráter dos homens

Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora




No centenário da Abolição da escravidão no Brasil, 1988, pesquisa da USP construiu diagnóstico preciso sobre o pesadelo de sociedade que brotou aqui. À pergunta “Você é racista?”, 97% dos entrevistados responderam “não”; à questão “você conhece alguém racista?”, 98% cravaram “sim”. O negacionismo hipócrita de não se enxergar preconceituoso – contra evidências infinitas – decifra o bicho brasileiro.

E serve à perfeição para outro trejeito, nacional como a jabuticaba e o desprezo pelo sinal vermelho: o machismo. A mazela e sua prima mais descarada – a misoginia – moram na alma e no caráter dos homens. (E em muitas mulheres, mas cada vez menos, viva!) Os brasileiros somos criados e doutrinados sob a sombra inquebrável da superioridade masculina, indutora do ódio ao sexo feminino.

As estatísticas gritam – uma mulher vítima de violência a cada quatro horas97% delas alvos de importunação no transporte públicosalários menores do que os dos homens –, para construir o Everest do patriarcado brazuca. Uma outra, igualmente importante, calcula que 30 milhões de mulheres sofreram algum tipo de assédio em 2022.

Aqui, a tragédia ganha um ícone: Marcius Melhem. O humorista, ex-mandachuva do setor na Globo, transformou-se em referência de misoginia, com a odisseia de violência imposta a várias mulheres, suas subordinadas e colegas de trabalho. O rosário de ignomínias começou a ser revelado por João Batista Jr, em dezembro de 2020, a partir da perseguição a Dani Calabresa e outras sete vítimas. Era somente a ponta de uma postura sistêmica no dia a dia do núcleo de humor da Globo.

Semana passada, os repórteres Guilherme Amado e Olívia Meirelles entrevistaram vítimas do assédio sexual e moral do chefe, além de outros integrantes da mesma área na emissora, testemunhas de diversas barbaridades. O trabalho – jornalismo de primeira qualidade – emula toda uma sociedade venenosa com as mulheres.

A entrevista de vítimas e testemunhas dos assédios ao Metrópoles. Foto Leonardo Hladczuk/Metrópoles
A entrevista de vítimas e testemunhas dos assédios ao Metrópoles. Foto Leonardo Hladczuk/Metrópoles

Elas sofreram sozinhas, como sempre sem a solidariedade masculina. Após as denúncias, o ator Marcelo Adnet e o diretor Mauro Farias endossaram os relatos – mas e antes, durante as ocorrências? Quando o assediador se esfregava nas vítimas, algum marmanjo se levantou para confrontá-lo? Quando as histórias circularam por camarins e corredores, apareceu um barbado para tomar satisfação? Não – porque o Brasil é o reino encantado do “não tenho nada com isso”.

E do aval silencioso. A cada entrevista ou denúncia em torno de Melhem ou de outro misógino, a reação masculina obedece padrão lamentável. “Como observação”, “para dar o contexto todo”, surgem insinuações sobre o comportamento das mulheres, “que teriam dado mole”, “se oferecido” ao algoz. O conteúdo vem temperado pelo molho erótico que enfeitiça as mentes masculinas – e, claro, atribui parte da culpa às vítimas. Vira uma espécie de “sai com essa saia curta e não quer ser estuprada?” em formato de mensagem de áudio. Rigorosamente nenhum dos rapazes que invocam o “veja bem” sobre o caso se acha machista. Ao contrário – se chamá-los assim, acaba a amizade.

Tudo a ver com o que somos como sociedade. Misógino é o outro, aquele lá longe; machista, onde já se viu? Isso no país que precisou de lei específica para punir feminicidas; que inventou a “legítima defesa da honra” masculina como argumento jurídico; que grita “piranha” em shows e jogos de futebol; que tem a pedofilia sedimentada em sua formação; que exalta a truculência masculina, mas debocha da “falta de sexo” da mulher exaltada (ou mesmo firme); que saliva com as novinhas em fotos e vídeos eróticos compartilhados via aplicativos de mensagem; que condena, na covardia das conversas privadas, o empoderamento feminino. E muito, muito mais.

Nessa terra viciada no conchavo, o que faz Marcius Melhem? Joga o jogo. No primeiro momento, o distinto público com os nervos à flor da pele, encenou o desconstruído em processo, ajoelhado metaforicamente no milho, em nome das filhas, da família brasileira, de um mundo melhor, dos passarinhos que gorjeiam etc. Quando os ânimos esfriaram, mergulhou no contra-ataque, em estratégias cuidadosas na justiça e na mídia. Choramingou sobre “linchamento”, questionou informações em off de suas adversárias e, tijolo por tijolo num desenho lógico e amoral, anunciou processos contra suas acusadoras.

Paralelamente, ofereceu-se para conversas, também em off, com formadores de opinião, querendo dar a própria versão. Em escolhas cirúrgicas, permitiu-se botar a cara. “Muitos foram meus erros. Quero reconhecê-los e me responsabilizar por eles. Mas, permita-me fazer um apelo à consciência daqueles que lincham sem considerar o direito à dúvida, baseados em uma narrativa sem provas e sem considerar a hipótese de haver motivações inconfessáveis por trás de acusações anônimas”, escreveu, ao colunista Ricardo Feltrin.

De um lado e de outro, os processos arrastam-se na Justiça, no brasileiro ritmo de cágado que tanto beneficia os ricos. O ex-chefão da Globo segue correndo o campo todo. “Dani Calabresa nunca me disse ‘não’”, pretextou, também a Guilherme Amado e Olívia Meirelles, em resposta à entrevista de suas vítimas.

Na medida para aprender com Milly Lacombe, espetacular colunista do UOL, que ensina como deve tocar a banda. “Para que uma mulher prove que foi assediada é preciso um vídeo e dezenas de testemunhas – e, ainda assim, haverá quem diga que não foi nada, que é chororô. Aqui seria importante que ele (Melhem) começasse a ler sobre consentimento. Sobre como muitas vezes não conseguimos dizer não. Ainda mais se a situação envolver uma dinâmica de poder da qual muitos e muitos e muitos chefes se aproveitam. Sobre como o feminismo está, por causa dessa dificuldade, mudando o ‘não é não’ para ‘só sim é sim’.”

A favor das manobras do chefão assediador, posiciona-se todo um país patriarcal, que faz até poesia com a violência de gênero. “Mas se ela vacilar/ Vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e quatro costelas/ Vou pegar a tal faixa amarela/ Gravada com o nome dela/ E mandar incendiar/ Na entrada da favela”, canta Zeca Pagodinho no hit “Faixa amarela” (dele, Luiz Carlos, Jessé Pai e Beto Gago). “Quando você gritou mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar”, entoam vários nomes aclamados da MPB, em “Gol anulado”, de João Bosco e Aldir Blanc.

Para ficar no assédio, volta Milly Lacombe. “Eis aqui o mais bem recortado direito sexual dado ao homem ao nascer: uma mulher sempre quer. Se ela encurta a saia, é para você. Se ela pisca pra você na reunião, é porque quer dar para você. Se ela aparece com um imenso decote na festa da firma em que você é o chefe, então é porque ela está muito a fim de transar com você. Uma mulher não existe em si mesma; ela existe para você. Para o seu gozo. Para o seu deleite”.

O centralismo macho é a base desse bolo amargo, que o Brasil teima em servir. Às mulheres, resta a resiliência diante de um ambiente tóxico, que muda sim, mas muito lentamente. “Todo abusador tem porta-voz”, atesta Dani Calabresa, hoje na batalha para não ser descredibilizada como cidadã nem desqualificada como vítima.

Cruzada das mais inglórias, na terra ensolarada e leniente onde todo homem tem um pouco de Marcius Melhem.

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